Cascudo - Biblioteca Virtual

Depoimentos
  • Numa força interior profunda, irradiando ao pensamento, trago ao presente aquele que permanece dentro dos meus olhos e penetra no coração, sustenta-me o dia-a-dia. Conheci-o em 1925, cursando faculdade no Recife. Vivíamos a época incomparável do romantismo que tanto influenciava, sentimentalmente, os jovens. Menina-moça, como era, havia há pouco me desligado das bonecas, das cantigas de roda, das brincadeiras de adolescentes. Iniciava o devaneio dos sonhos cor-de-rosa, dos castelos povoados de contos de fadas, numa criatividade de encantos de uma colegial sensível e sonhadora.

    Dezesseis anos, foi quando, por uma feliz aproximação do destino, meus olhos se cruzaram com os mais lindos olhos verdes, maravilhosos, de um jovem muito elegante e expansivo. Trajava-se ao modo peculiar, distinguindo-se dos demais rapazes do seu tempo. Tinha tudo para fascinar a atração feminina. Usava monóculo, polainas, bengalinha de junco-da-índia, flor na lapela, relógio de algibeira, chapeuzinho de delicada palha, já com seu inseparável charuto.

    Seu temperamento extrovertido, vibrante, hábil, galanteador, tempestuoso, contrastava com meu modo de ser, tímido e recatado. Senti, todavia, que se interessava pela “menina” que o olhava surpresa, na impressão de que seu “príncipe” surgia na sua frente naquele momento inesperado.

    Amor à primeira vista, usamos a linguagem do coração. Temperamentos opostos não influenciaram nossa aproximação. O romantismo era o traço dominante que se fazia comum em nossa sensibilidade, dois jovens que se atraíam sob doces olhares e a melodia das valsas de Strauss, das serenatas ao luar, do cinema mudo, de atitudes desvanecedoras. As violetas da lapela foram substituídas por dálias, diariamente renovadas, como afirmação de uma presença humana desejada e querida.

    Raramente trocávamos a sós um gesto de afeto e juras de amor. A reciprocidade de lutarmos pelo mesmo ideal nos fez vencer todas as barreiras. Comecei a freqüentar os primeiros bailes com meus pais, onde encontrava “o príncipe de meus sonhos”, já atento a me esperar. Monopolizava-me como sua única dama. No desejo de acompanhá-lo em todos os ritmos, logo aprendi a danças o charleston de salão, tornando-me tão ágil quanto ele. Com a perspicácia intuitiva feminina, compreendi que, para nosso entendimento mútuo, afetivo, deveria libertar-me um pouco da timidez avançando os limites da minha severa educação. Como resposta a esse gesto espontâneo, o inteligente e interessado jovem acadêmico dominava seus impulsos de exuberância, que me chocavam, e harmoniosamente íamos nos encontrando.

    Durante os dois anos de noivado, de 1927 a 1929, construímos alicerces para a felicidade plena de nossa união conjugal. Assim permanecemos, no encantamento da felicidade, durante os 57 anos de matrimônio. Jamais nos desentendemos nem nos decepcionamos. Sempre o ouvia repetir considerar-se um homem inteiramente feliz, fiel à sua vocação. Só escrevia o que gostava e só fora na vida o que amava. Jamais se deixou influenciar, afirmava ter produzido todas as suas obras porque não lhe faltou ambiente, com ausência absoluta de problemas e notícias desagradáveis.

    Dividi nossa casa em dois mundos: em primeiro plano, o respeito ao seu trabalho intelectual. Sua biblioteca representava para mim seu laboratório de pesquisa. Jamais o interrompi em sua máquina de escrever, na elaboração de seu trabalho mental. Doei-me com toda plenitude, sabendo distinguir o marido do escritor. Adorava ambos. Fui sua maior admiradora, sua fã incondicional. Participava de suas vidas com muito entusiasmo e emoção. Sentia-me plenamente correspondida pela valorização que dele recebia.

    Nos últimos tempos, a ternura e o companheirismo passaram a nos envolver emocionalmente.

    Revivíamos, com doçura, as páginas do passado. Ele, a me relembrar colegial, revia aquela “garota” que conhecera em 1925. Repetia sempre: “A idade da mulher é moldada pelo carinho do marido”. Meu espírito rejuvenescia ao evocar o jovem que me empolgou, entusiasticamente, com seus lindos olhos verdes. O romantismo perdurou por toda a nossa vida. Ainda apreciávamos o luar de mãos dadas, onde nos encantávamos um com o outro.

    Não o tenho presente ao meu lado, faço de sua memória uma perene evocação.

    Obs: Depoimento originalmente concedido para o livro I Painel sobre a Vida e Obra de Câmara Cascudo, organizado pelo Professor Romildo Teixeira de Azevedo, Brasília: 1987.

    Fonte: Câmara Cascudo - Um homem chamado Brasil. Oliveira, Gildson.
                     Brasília: Brasília Jurídica, 1999.

    Dáhlia Freire Cascudo
  • Luís da Câmara Cascudo foi um dos homens mais cultos que conheci ao longo da minha vida. Não faço esta declaração agora, quando reverenciamos seu centenário. Não estou querendo ser agradável a ninguém. Na verdade, nós tivemos pouca convivência porque ele morava em Natal e eu residia no Ceará ou aqui no Rio de Janeiro. Mas sempre que tínhamos oportunidade de nos encontrar, era aquele abraço, aquela amizade!

    Falar do Cascudo é sempre muito agradável. Não vou fazer aqui retrospectiva de sua obra literária, não é fácil. Ele impressionava pelo saber. Sabia demais sem sair da outrora Natal provinciana. Outros que viviam nos centros mais adiantados, como eu, nem de longe podíamos nos comparar a Luis da Câmara Cascudo. Coisa de gênio, uma raridade neste país, de quem não conhecemos as grandes personalidades culturais.

    Uma vez eu vinha de navio para o Rio. Quando o vapor atracou em Natal, aparece-me ele a bordo, dizendo que vinha me raptar. Gritou bem alto: “Vou lhe seqüestrar!!! Você agora é minha, não sairá mais de Natal! Temos de pisar este chão de minha cidade. Vamos embora, menina!”. Imagine, eu, uma menina! “Você ficará encantada com isto aqui, verá o pôr-do-sol mais lindo do mundo. Quero lhe mostrar o Potengi, juntando crepúsculos a seu lado, é muito bonito!”. O pessoal de bordo viu aquele homem de cabelo esvoaçante, belos olhos, elegantemente vestido, de paletó e gravata. Identificaram logo que era o escritor maior do Estado, Câmara Cascudo. Aí nos abraçamos e saímos escada abaixo, de mãos dadas. Não parava de gargalhar porque havia me “seqüestrado”.

    Levou-me para a casa dele direto, e só me trouxe na hora de o navio partir. Passei o dia na casa dele, com a família dele; almoçamos juntos. Foi um encontro muito cordial. Não sei precisar exatamente o dia e o mês, mas sem dúvida a década era de 60. Eu não o conhecia antes. Depois do “rapto”, ficamos amigos até morrer. Morrer não, até ele “viajar”, como preferia. Tinha horror à palavra morte. Cascudo era o retrato do bom humor, da alegria de viver, descontração, inteligência, grande sensibilidade poética. Por isso ele continua cada vez mais vivo, suas lembranças são saudáveis e carinhosas. Encantava a todos nós. Não esqueço da ternura dele, do tratamento carinhoso de sua família. Aliás, devo ressaltar que nunca almocei tão bem quanto no sobrado da Ribeira, pratos regionais deliciosos. Um doce de coco divino, depois queijo com mel de engenho. Ah! Meu Deus, como o Cascudo nos faz falta neste momento brasileiro. Não é que ele gostasse de política, mas sabia, na hora certa, alfinetar com fina ironia. E o que dizia tinha muita projeção.

    Fonte: Câmara Cascudo - Um homem chamado Brasil. Oliveira, Gildson.
                     Brasília: Brasília Jurídica, 1999.

    Rachel de Queiroz
  • Luís da Câmara Cascudo é o papa da literatura, nosso grande mestre, que descobriu a sabedoria popular brasileira. É um tesouro de ensinamentos e surpresas, de pesquisas, de experiência cultural, mestre nas manifestações do povo. O que ele procurava nos livros, como dizia, era a consolidação da cultura popular no tempo, porque no espaço, na vivência, ele estava vendo e ouvindo. Deixava claro que saía em busca da investigação, não ficava somente na leitura. Aos que lhe criticavam, sugeria que fossem para o meio da rua, do campo e das cidades, que visitassem feiras e mercados. Aqueles que não viram nem ouviram as velhas sertanejas conversando, não escutaram os cantos nas bocas populares e, por isso, não tinham competência para falar.

    Citar Luís da Câmara Cascudo é magoar uma saudade, porque ele, desde quando começou o nosso conhecimento pessoal, sempre foi meu mestre e muito me incentivou quando descobri o mundo maravilhoso do folclore. Mas, além de meu mestre e de incentivador, foi, desde então, também um amigo. Tudo começou em 1969, quando publiquei Como Nasce um Cabra da Peste, que foi o meu primeiro livro na área da cultura popular. Consegui, não me lembro com quem, seu endereço e lhe enviei um exemplar do livro. Passados alguns dias, recebi uma carta dizendo que havia gostado muito do meu trabalho. Essa carta me deu força para que eu pudesse continuar meu sonho. Acontece que, na época, já se encontrava em fase final uma pesquisa minha, com a finalidade de reunir todas as informações possíveis sobre a figura carismática de Antônio Silvino, e que resultou no livro Antônio Silvino, Capitão de Trabuco. Antes de mandar os originais para uma editora carioca, eu me lembrei de saber a opinião de Cascudo. Foi quando recebi o prefácio dele que tanto enriqueceu o livro.

    Seu prestígio internacional era enorme. E ele me contou, numa outra visita que lhe fiz, que, certa noite, estava dormindo quando o telefone tocou. Era um professor de uma universidade americana que queria saber como era que os jacarés namoravam. Se vivo fosse, completaria em dezembro de 1998, cem anos de idade, o que infelizmente não aconteceu. Mas os anos em que viveu, no aconchego de sua família e na sua biblioteca, dedicou grande parte de sua vida ao estudo das nossas tradições, dos costumes, dos hábitos, da alma da nossa gente.

    Um jornalista me perguntou qual, na minha opinião, era o melhor livro do mestre Luís da Câmara Cascudo. Eu então lhe respondi que ele não tinha um livro melhor, porque todos eles eram excelentes, verdadeiras fontes de sabedoria. Mesmo continuando a pensar assim, gostaria de salientar a História da Alimentação no Brasil, Dicionário do Folclore Brasileiro, Vaqueiros e Cantadores, Lendas Brasileiras, Geografia dos Mitos Brasileiros, Anúbis e Outros Ensaios, Jangada, Meleagro, Rede de Dormir, Superstições e Costumes e tantos outros. Sua obra permanecerá viva através dos séculos, como permanecerão as de Pereira da Costa, as de Gilberto Freyre e as de outros brasileiros ilustres. É um dos poucos escritores cujos livros atemporais serão lidos e consultados tanto no presente quanto no futuro. Este é o meu depoimento sobre Luís da Câmara Cascudo, o homem e a obra. São palavras singelas, eu sei, mas vindas do coração e da profunda admiração que sempre tive por ele.

    Fonte: Câmara Cascudo - Um homem chamado Brasil. Oliveira, Gildson.
                     Brasília: Brasília Jurídica, 1999.

    Mário Souto Maior
  • — Já consultou o Cascudo? O Cascudo é quem sabe. Me traga aqui o Cascudo.

    O Cascudo aparece, e decide a parada. Todos o respeitam e vão por ele. Não é propriamente uma pessoa, ou antes, é uma pessoa em dois grossos volumes, em forma de dicionário que convém ter sempre à mão, para quando surgir uma dúvida sobre costumes, festas, artes do nosso povo. Ele diz tintim-por-tintim a alma do Brasil em suas heranças mágicas, suas manifestações rituais, seu comportamento em face do mistério e da realidade comezinha. Em vez de falar Dicionário Brasileiro poupa-se tempo falando “o Cascudo”, seu autor, mas o autor não é só dicionário, é muito mais, e sua bibliografia de estudos folclóricos e históricos marca uma bela vida de trabalho inserido na preocupação de “viver” o Brasil.

    Agora, mandam dizer de Natal que vão comemorar os 50 anos de atividades culturais, os 70 anos de idade de Luís da Câmara Cascudo, o que é de inteira justiça. Bater palmas ficou muito sem sentido, depois que, na televisão, artistas se aplaudem a si mesmos, fingindo que aplaudem os acompanhantes ou o público, este último convidado perenemente a aplaudir tudo e a todos. O governo auto-aplaude-se, imitando o novo costume, e o Brasil parece uma festa... encomendada. Vamos esquecer o convencionismo publicitário, diante das comemorações a Cascudo. Este fez coisas dignas de louvor, em sua contínua investigação de um sentido, uma expressão nacional que nos caracterize e nos fundamente na espécie humana.

    Lendo agora o vasto documento de Joaquim Inojosa sobre O Movimento Modernista em Pernambuco (também dois tomos em véspera de quatro), vou encontrar o jovem Luís da Câmara Cascudo, nos longes de 1925, tangendo a lira nova. Não é surpresa para mim, que o saiba poeta modernista, não arrolado por Bandeira em sua antologia de bissextos. Em carta que Inojosa reproduz (seu livro contém, muita coisa que vale a pena conhecer, como retrato intelectual dos anos 20), o futuro autor da Geografia dos mitos brasileiros manda-lhe dois poemas modernistas para serem publicados no Recife. Eram de um livro que em Agosto se chamava Bruaá e em Novembro do mesmo ano passaria a intitular-se Caveira no campo de trigo. Nunca se editou esse livro. O poeta Cascudo permaneceria inédito, sufocado pelo folclorista e historiador.

    Este cronista sabia da fase poética de LCC por haver recebido dele, eram eras remotas, um Sentimental epigrama para Prajadipock, Rei do Sião, um reino “governado em francês”. Como também lhe conhecia estes Lundu de Collen Moore, que marca suas preferências nativistas sobre os mitos importados de Hollywood, é bem típico do nosso modo de dizer em 1929:

    Os olhos de Collen Moore
    olhos de jabuticaba
    grandes, redondos, pretinhos...
    mais porém
    são olhos de americano,
    meu-bem.
    Eu sempre prefiro os seus,
    meu bem!

    Olhos de ver no cinema,
    só lembra a gente espiando
    e depois é se esquecendo,
    meu-bem.
    Eu sempre prefiro os seus,
    meu-bem!

    Olho de gente bem branca
    que não mora no Brasil
    fala fala atrapalhada,
    meu-bem,
    é olho de terra boa
    mas porém
    eu sempre prefiro os seus.
    Meu-bem!...

    Tocando o verso inicial pela prosa, Cascudo não abandonou “mais porém” a poesia. Em sua paixão de brasileirista, vista-a no lendário, nas tradições, na espiritualidade primitiva e lírica de nosso pessoal. E registra-a com esse amor de toda uma vida fiel à sua terra e sua gente.

    Fonte: Revista Província 2
                     Natal: Fundação José Augusto, 1968.148 p.
                     2a ed. Fac-similar. Natal: EDUFRN - Editora da UFRN, Fundação José Augusto, IHGRN, 1998. 148 p.

    Carlos Drummond de Andrade
  • Luís da Câmara Cascudo vem dando aos estudos de folclore no Brasil o máximo de dignidade intelectual: fazendo deles estudos sistemáticos, uns de Antropologia Cultural, outros, de História Social e até de alguma Sociologia da História. Realizando pesquisas, ora de arquivo, ora de campo, nesses setores. Indo até à África para melhor compreender a parte folclórica ou popular da cultura brasileira. Procurando com os próprios olhos em Portugal raízes ou começos europeus dessa cultura e também da erudita. Embrenhando-se em mitos e crendices.

    Era o que se impunha. Faltava-nos, com efeito, um José Leite de Vasconcelos - sábio que, nos meus dias de jovem ainda conheci velhinho mas ainda ativo e até dinâmico; e que, à frente do Museu Etnológico de Lisboa tanto fez para desenvolver, no seu país, estudos que podem ser classificados como de antropologia cultural e de história social; e não apenas de folclore. Luís da Câmara Cascudo preencheu este vazio: tornou-se o nosso José Leite de Vasconcelos. Ultrapassou em certos pontos o pesquisador português. Excedeu-o no trato de seus tantos problemas.

    Faltou-lhe, é certo, fundar, entre nós, uma publicação do  tipo e da importância da Revista Lusitana, que reunisse colaborações de outros pesquisadores. Que desenvolvesse uma atividade em conjunto de vários homens de estudo. Realizou-se, porém, como mestre insigne na matéria, através de um esforço individual tão vasto que parece não ser de um homem só mas de vários. De modo que sua obra tem amplitude ao mesmo tempo que solidez.

    Ninguém subestime o que se deva entender por “folk” ou por “cultura folclórica”, supondo ser o seu estudo um fácil devaneio em torno de temas apenas curiosos ou somente pitorescos. O verdadeiro estudo do “folk” alonga-se em análise do comportamento humano em suas formas mais características: antropologia cultural, portanto. A obra de Leite de Vasconcelos Religiões da Lusitânia não é inferior, pelo que contém de saber sério, sólido, sistemático, a qualquer estudo inglês de antropologia cultural sobre temas semelhantes, como os de Frazer ou os de Lang. E essa é a tradição seguida por Luís da Câmara Cascudo: a do estudo do folclore ampliado em estudo antropológico cultural e de história social. Para tanto, não lhe vem faltando o conhecimento dos trabalhos sobre as duas matérias aparecidos em outras línguas além da portuguesa: na inglesa, na francesa e na espanhola, principalmente.

    Tão pouco lhe tem prejudicado a atividade incessante de folclorista desdobrado em antropólogo cultural e em historiador social qualquer preconceito de escola cientificista ou de seita ideológica. Em sua obra há ciência sem haver cientificismo. Há também brasileirismo, lusismo, luso-africanismo, sem haver exagero etnocêntrico ou excesso nacionalista a prejudicar-lhe a ciência autêntica ou o saber honesto.

    Em sua rejeição do chamado “determinismo econômico”, Luís da Câmara Cascudo poderia repetir o pronunciamento famoso de Boas: “it would be an error to claim that all manifestations of cultural life are determined by economic conditions”. E ao deixar de seguir passivamente o outro determinismo - o evolucionista - poderia ele invocar a seu favor a atitude adotada pelo mesmo e grande Boas em suas pesquisas, com relação às pretendidas leis universais de evolução social ou cultural: a atitude de considerar as culturas, quer tribais, quer ultra-tribais, como culturas singulares condicionadas por seus ambientes. Por conseguinte, rebeldes, em grande parte, a simplificações ou generalizações acerca dos seus desenvolvimentos que os ajustassem arbitrariamente àquelas supostas leis.

    Os estudos de Luís da Câmara Cascudo têm este nítido caráter não evolucionista: são estudos de culturas particulares, regionais, ecológicas, com características peculiares aos seus próprios desenvolvimentos históricos e condicionadas pelos seus ambientes. É o que indica - por exemplo - sua obra magistral sobre a geografia dos mitos: os próprios mitos são estudados dentro do seu condicionamento não só cultural como até geográfico.

    De modo que essa sua obra - uma das suas produções mais importantes - poderia ser posta ao lado da de Alexander Golden Werser, Totemism: an analytical study (1910) e da do próprio Franz Boas, Tsimshian Mythology (1916) como análises do tema - mitos, totens, tabus - que revelam as fraquezas do método ortodoxamente evolucionista seguido por Frazer em obra famosa. Pois de tais estudos resulta evidente esta realidade: a da mitologia e a do totemismo se apresentarem com diferentes expressões históricas e psicológicas em culturas diversas. Ou em áreas culturais e geográficas diversas.

    Seus estudos sobre as origens africanas do sistema alimentar brasileiro, sobre a jangada, sobre a rede - complexos culturais, todos eles, considerados pelo ilustre mestre brasileiro dentro dos seus condicionamentos ecológicos - são outras tantas afirmações daquele seu critério antropológico: um critério que, fugindo aos determinismos rígidos, tem orientado obras que situam o douto provinciano do Rio Grande do Norte entre os mestres contemporâneos de sua especialidade, dentro e fora do Brasil. Com esse seu pendor para estudar complexos culturais em suas singularidades, concilia-se, aliás, sua própria tendência para conservar-se brasileiro de província. Pois chega aos setenta anos, sem ter se deixado seduzir por qualquer das chamadas “metrópoles”, onde sua atividade intelectual teria, talvez, maior realce; mas não maior importância para quantos no Brasil e no estrangeiro, estudam a matéria de que, ainda jovem, tornou-se mestre.

    Não devo deixar de congratular-me com os diretores da Fundação José Augusto pela iniciativa de homenagearem Luís da Câmara Cascudo, com uma publicação comemorativa dos seus “setenta anos de idade e dos cinqüenta de atividades culturais”. O Brasil, e não apenas o Rio Grande do Norte, saberá comemorar estes dois acontecimentos significativos. Mas é  bom que a província a que Mestre Luís da Câmara Cascudo tem se mantido tão amorosamente fiel, vivendo sempre nela e tornando-a famosa dentro e fora do nosso país, não se omita dessas comemorações. Ao contrário: destaque-se pelo calor de admiração com que dá à sua homenagem ao filho ilustre o caráter não só de um ato de justiça intelectual como de uma manifestação de brio cívico. Que em Cascudo o cidadão do Brasil e, particularmente, do Rio Grande do Norte, não deve ser esquecido: nele o cidadão tem sido tão exemplar em suas preocupações e atividades quanto o sábio em suas produções ou em seus estudos.

    Fonte: Revista Província 2
                     Natal: Fundação José Augusto, 1968.148 p.
                     2a ed. Fac-similar. Natal: EDUFRN - Editora da UFRN, Fundação José Augusto, IHGRN, 1998. 148 p.

    Gilberto Freyre
  • Tão jovem aos setenta anos, Mestre Luís da Câmara Cascudo cada dia redescobre o Brasil num dito popular, numa lenda, na realidade de um instante mágico, na mesa do almoço ante um prato de nossa culinária, na face do homem e na medida de uma existência vivida toda ela em função da cultura, da cultura brasileira. Eis um mestre de Brasil, Cascudo.

    Estivéssemos num tempo menos melancólico e limitado, estivéssemos num tempo de democracia e cultura, e por toda parte do Brasil seriam levantados monumentos a esse homem que atravessou e atravessa sua existência (pobre de bens materiais e rica de alegria criadora) no estudo e na invenção da pátria, da verdadeira nação brasileira, do homem brasileiro.

    Temos muitos escritores importantes, sábios de alta qualidade, artistas magníficos, temos intelectuais de grande valor. Mestres, porém, temos poucos. Mestres no sentido amplo da palavra: construtores da realidade, da verdade brasileira, assim como Luís da Câmara Cascudo, tão jovem aos setenta anos.

    Aqui, com minha homenagem de admiração e amizade, quero deixar uma pergunta: quando terei a alegria e a honra de votar em Luís da Câmara Cascudo para a Academia Brasileira?

    Fonte: Revista Província 2
                     Natal: Fundação José Augusto, 1968.148 p.
                     2a ed. Fac-similar. Natal: EDUFRN - Editora da UFRN, Fundação José Augusto, IHGRN, 1998. 148 p.

    Jorge Amado
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