O FOLCLORE ESTÁ VIVO
E RODOVIAS, LUZ ELÉTRICA E RÁDIOS DE PILHA AJUDAM A SALVAR UMA CULTURA QUE SE SUPUNHA AMEAÇADA
Por Dailor Varela
Logo na entrada de Natal, RN, um cartaz de propaganda da aguardente Pitu anuncia: “Esta é a terra de Câmara Cascudo”. Ao longo dos seus 74 anos, Luís da Câmara Cascudo provou, realmente, que ninguém merece mais do que ele chamar de “sua” a cidade de Natal: esteve na África, Ásia e Europa, conheceu todos os intelectuais importantes no Rio e São Paulo e voltou, sempre, para sua casa oitocentista na Avenida Junqueira Aires, onde guarda um museu de artesanato popular de todo o mundo e uma biblioteca de livros raros, comprada com grande dificuldade.
A casa tem a respeitabilidade de um prédio público, e na sua porta batem, todos os dias, interessados em todos os tipos de favores. Jornalistas, professores, estudantes, antropólogos, brasileiros e estrangeiros vão consultar Mestre Cascudo. Pessoas humildes vão pedir-lhe conselhos e empregos. A mulher de um soldado da Polícia Militar queria que ele mandasse soltar o marido preso. O resultado de tanta procura costuma ser uma ríspida placa na porta: “Mestre Cascudo não atende pela manhã”.
Cascudo tem em sua casa cartas de Mário de Andrade, do conde d’Eu (“meu amigo particular”), uma máscara de madeira de um príncipe africano (“presente de amigos de lá”), infindas peças de artesanato. Já escreveu mais de cem livros sobre folclore, publicados no Brasil e no exterior, é o maior especialista brasileiro e recebe de todo o mundo pedidos como “um estudo sobre o comportamento dos jacarés na Amazônia” (de um professor de Harvard) ou sobre a literatura de cordel (dez universidades americanas, em 1971, eram as interessadas). Não tem tempo para atender a todos, mas em compensação passa a noite trabalhando – um hábito que vem da mocidade e de uma infância cheia de cuidados e proibições. Seus três irmãos morreram, ainda pequenos, de difteria e ele cresceu amarrado aos livros, colecionando estampas de santos e ouvindo histórias. Foi o primeiro menino de Natal a possuir uma biblioteca e com dezesseis anos, em 1914, já anotava tudo que via em seu redor. Cresceu habituado a colocar livros e pesquisas acima de qualquer outro interesse. Para comprar uma “Bibliographie de Ouvrages Arabes”, de Victor Chauvin (1892-1922), em doze volumes, teve que renunciar ao prazer de ter uma casaca nova.
Irônico, muito bem-humorado, Cascudo não se separa do seu charuto. É surdo do ouvido direito (“O esquerdo eu guardo para os políticos, para ouvir só o que quero”) e aproveita o defeito para assistir televisão, tendo a sensação exata de que está vendo um filme mudo da sua juventude. Define-se como “um derramado”, que fala muito. Na realidade, durante três dias de entrevista, ele demonstrou sua habilidade em manejar as palavras e em aproveitar o imenso arsenal de informações guardado em sua memória. Faz questão de dizer que é da geração de Luís Carlos Prestes e Lampião. A diferença – e que fez de Cascudo um monumento vivo – é que “optou por uma profissão lícita”.
Trabalhar por gosto e pouco dinheiro
VEJA – Como surgiu seu interesse pelo estudo do folclore?
CASCUDO – É consequência da minha vida no sertão, o sertão de antes da rodovia e da luz elétrica. Nós não sabemos a origem da vocação, como não sabemos explicar o mistério psicológico da simpatia. Desde pequeno eu tomava nota dos folguedos infantis, das cantigas de roda. Eu vivi o folclore, enquanto todo mundo no Brasil estuda o folclore em livros. Mário de Andrade pensava que eu havia aprendido folclore lendo Sílvio Romero. Não. Eu aprendi folclore ouvindo o aboio dos vaqueiros. Por isso dizia o Zé Lins do Rego: “Mestre Cascudo é o único folclorista que não mente!”.
VEJA – E como é que o senhor faz suas pesquisas?
CASCUDO – Eu costumo usar um método americano: misturar-me com as pessoas para aprender alguma coisa, e não ficar vendo as coisas do palanque, com as autoridades. Na África, eu aprendi muito no meio da negraria. Os professores universitários africanos costumam dar aula de dia com paletó e gravata. De noite, a gente encontra o professor pintado, mascarado, dançando ao som dos batuques. No Brasil qual o professor que dança bumba-meu-boi? Nem eu mesmo danço.
VEJA – Que compensações o senhor tem com seus estudos?
CASCUDO – Economicamente, não creio que exista compensação. Mas a vocação compensa-se pelo seu próprio trabalho. Tudo que é feito com amor, com satisfações secretas, vale a pena. Quando eu termino um livro, já me sinto pago pelo prazer de ter viajado aqueles motivos. O escritor que calcula quanto lhe renderá um livro, em direitos autorais, limita a própria alegria. Sou um homem antifinanceiro. E ninguém vai perguntar por que mamoeiro não dá jaca. Eu trabalho porque gosto. Fui a vida inteira o que quis ser. E não mudo porque não gosto. Quando comecei a escrever sobre rede de dormir, todo mundo me chamava de louco. Hoje, meu trabalho “Rede de Dormir” já foi publicado até em japonês. São as compensações íntimas.
Um choque: a aviação e o cordel
VEJA – Dizem que o senhor ensinou folclore a Mário de Andrade...
CASCUDO – Fomos... fomos não, somos grandes amigos, porque a morte não nos separou. Mário esteve na minha casa, em Natal, em dezembro de 1928. Não creio que ninguém tenha ensinado alguma coisa a Mário. A não ser a mãe dele, ou alguma ama. Nunca me passou pela cabeça ensinar cultura popular a Mário. O que ele viu comigo, naquele tempo, foram os folguedos populares na sua legitimidade: o bambelô, o coco-de-roda. E o que fiz, sem nenhuma intenção pedagógica, foi expor um temário “in loco”. Tenho a mesma atitude com qualquer pessoa interessada em cultura popular. Outro dia um professor universitário me perguntou o que devia ler sobre o assunto. Mandei-o visitar uma feira. E recomendei: vá lá, meu filho. Não leia ninguém descrevendo uma feira. O melhor estudo a ser feito está nos mercados, feiras e ruas. Foi o que Mário viu comigo.
VEJA – O senhor viu ou participou do que Mário de Andrade fez na Semana de Arte Moderna, em 1922?
CASCUDO – Aquilo foi uma reunião de vários temperamentos – e alguns mais explosivos, como Oswald de Andrade, que eu chamava de “doido-mor”. A Semana não teve mestres, mas um clima de excitação que inclusive favoreceu a uma leitura desordenada. Oswald achava que a escrava não era mais Isaura e acabou. Não lia nem gostava. Hoje, eu acho que a importância da Semana foi antes de tudo poética. Depois de 22, os poetas nacionais ficaram mais livres das trovas, sonetos e baladas. O santo ofício parnasiano não amarra mais ninguém no pelourinho. É verdade que pela porteira de 22 passaram bons e maus poetas.
Conheci, em São Paulo, todos os artistas e poetas de 22, mas pertencia ao grupo do Recife. Agora, vale lembrar que a revista antropofágica e o verde-amarelismo valorizaram muito o folclore, o índio, o cotidiano brasileiro. “Tupy or not Tupy”, dizia o “doido-mor” Oswald de Andrade, que em plena confusão de 22 me abraçou com muito carinho pela minha preocupação em descrever o dia-a-dia brasileiro.
VEJA – A literatura de cordel praticamente desapareceu no nordeste. De quem é a culpa?
CASCUDO – A literatura de cordel ainda sobrevive através de centenas de folhetos que podem ser encontrados nos mercados de Salvador e Recife, por exemplo. No entanto, no sertão, onde surgiu, ela desapareceu como consumo. Era uma literatura narrativa, comentando a valentia feliz. Mas esse clima sertanejo acabou com o aparecimento das estradas e do rádio de pilha. O sertanejo não lê mais cordel. Vive outra realidade.
Então a literatura de cordel passou a ser uma curiosidade do litoral, a ser tese universitária nos Estados Unidos. De maneira que ela está em outro ciclo, outra vivência. Imagine que, ainda em 1932, eu vi no Rio de Janeiro mecânicos de avião lendo literatura de cordel, em cima das asas de seus aparelhos. É uma contemporaneidade secular! A mecânica e o cordel! No sertão, porém, não há mais interesse pelo cordel, aquele interesse que eu percebia nas sessões de leitura com meus tios, primos e vaqueiros no terraço da fazenda. Essa curiosidade do homem da capital pelo cordel é uma tendência lógica na cultura popular.
VEJA – E o que acontece com o cordel, quando ele chega ao litoral?
CASCUDO – Amanhã, as formas mais primitivas de manifestações populares passarão também para o litoral e se transformarão em teatro moderno, cinema, romances, poemas. Por isso nunca desaparecem. Elas se transformam. O mesmo fenômeno está acontecendo no México. Os tempos mudaram e o homem do sertão não lê mais nem “Carlos Magno e os Doze Pares da França”, que era a bíblia do meu tempo.
VEJA – O senhor, como folclorista, aprova esse aproveitamento do cordel em manifestações de cultura urbana?
CASCUDO – Toda produção de cultura popular está sendo aproveitada agora, a partir da segunda metade do século XX. Quando eu comecei a trabalhar, acontecia o contrário. Chegaram a pedir minha demissão de professor catedrático de História porque eu estaria desmoralizando o Atheneu Norte-Rio-Grandense ao estudar o bumba-meu-boi e contar histórias de lobisomem. Isso era indigno de um professor de História. Agora a literatura de cordel e o folclore interessam aos professores universitários, cineastas, poetas. Eu não condeno esse interesse. Não há nada imóvel que não acabe se fossilizando e desaparecendo. Defendo, portanto essa forma de sobrevivência, que nada mais é que uma volta às fontes primárias da forma.
Sou defensor da tradição, e não da imobilidade da tradição. No sertão do meu tempo, o primeiro gramofone que apareceu foi levado por minha mãe. Mais de cem vaqueiros cercaram uma noite o gramofone para ouvir discos da Casa Edison. Alguns queriam “descobrir o cantor”. Hoje, o homem do sertão troca as pilhas do seu rádio sem nenhum mistério.
VEJA – O senhor aprova, então...
CASCUDO – E como é que eu vou condenar o progresso? Se um cineasta filma baseado em literatura de cordel, ele está dando continuidade às raízes, ao sentimento do povo, ao terra-a-terra. Bato palmas para ele, como bato palmas para Ariano Suassuna pelo seu “Romance da Pedra do Reino”, de texto fiel a esses sentimentos do povo.
Da adaptação musical à venda em butique
VEJA – Como o senhor vê o aproveitamento de temas folclóricos gravados por artistas populares urbanos? Como Caetano Veloso gravando “Marinheiro Só”?
CASCUDO – O importante é que eles mantenham o sistema ósseo do tema popular. Não posso exigir que o artista mantenha as linhas rígidas, nem o original primário. A deformação às vezes é necessária como uma obediência a um processo de entendimento do auditório. “Marinheiro Só” é uma preservação do popular, e não uma adulteração, como muita gente pensa.
VEJA – Como o senhor vê a comercialização do artesanato através de butiques?
CASCUDO – O fenômeno da indústria de “souvenirs” é universal. É a quebra de barreira existente entre o artista popular, isolado na sua criatividade, e o consumidor da cidade, que através do artesanato tem possibilidade de conhecer uma realidade cultura que ignora. Quando eu vejo nos aeroportos e butiques pilhas de vaqueiros e jangadas eu me lembro que envelheci sem conhecer esses objetos. Fui menino de brinquedos de barro que não repetiam nossa realidade.
Vendo figuras de vaqueiros à venda, fico satisfeito em saber que nossos tipos e nossa realidade estão correndo o mundo. É claro que se deve exigir autenticidade e fidelidade dos tipos. Eu, pau-brasil puro, como vou ficar contra essa expansão da minha terra? Só acho que o governo deveria disciplinar o comércio para não ficarem inventando tipos.
Um primitivismo que não morre
VEJA – Em suas pesquisas, o senhor descobriu que existe uma relação muito íntima entre a cultura primitiva e a cultura urbana...
CASCUDO – A cultura popular é a criança que continua em nós, em nossa formação cultural e social. Tudo numa paralela: de um lado, as superstições, os mitos e as histórias que nossa mãe nos contou, de outro o que aprendemos na escola, no dia-a-dia da cidade, as viagens e as máquinas. A cultura primitiva prolonga-se na cultura geral e nunca desaparecerá.
Por que hoje ainda apertamos a mão? Por que em 1972 o homem não inventou outra forma de aplaudir? Já se aplaudia assim nas civilizações mais antigas. São heranças milenares de um primitivismo que permanece nas civilizações ultramodernas.
VEJA – A cultura nordestina lhe parece mais “brasileira” que a do sul?
CASCUDO – Não me parece. O que há é que mantínhamos um teor primário que era sedutor justamente pelo seu primitivismo. A figura do matuto com o dedo na boca, da donzela do interior, eram imagens falsas que acabaram promovendo o nordeste. O sertanejo não é antes de tudo um forte, é antes de tudo um sabido. Ninguém engana um sertanejo ou seduz uma donzela, se ela não quiser. Então acontece que todo mundo acha o nordeste “mais brasileiro” pelo nosso matutismo. No interior do Rio Grande do Sul e de São Paulo, por exemplo, sente-se o Brasil tanto quanto no nordeste. A poesia e o romance nordestinos é que divulgam muito a nossa região.
VEJA – Por que o senhor acha então que o sulista está vindo descobrir a Bahia?
CASCUDO – É a descoberta e o interesse pelo típico, pelo exótico. É o que Oswald de Andrade chamava de “Macumba para Turistas”. Explica-se: o carnaval do Rio é elitizado, apesar das raízes populares. Cassiano Ricardo forneceu o enredo para um bloco de carnaval este ano. Então, o carioca quer o carnaval de rua, o espírito dos antigos carnavais. Nisso o carnaval baiano e pernambucano, por exemplo, é bem mais povo.
VEJA – Como o senhor entende a integração do índio à civilização?
CASCUDO – O índio integrado deixa de ser índio. O índio é uma subalternidade social e econômica que não pode continuar. É inevitável. É ingênuo pensar que no ano 2000 o índio ainda estará de tacape e penas na cabeça.
Hoje mesmo o índio já compra rádio de pilha, geladeira, com o dinheiro que recebe com a venda de artesanato nos postos da Funai.
VEJA – O senhor tem alguma posição política?
CASCUDO – Eu fui deputado federal em 1930, eleito com uma maioria estupenda. Assumi no dia 1º de outubro e no dia 3 veio a Revolução e acabou com o meu mandato. Quer dizer: eu não tive tempo nem de salvar nem de perder o Brasil. E também não tive tempo de tomar gosto pela política. Minha vocação sempre foi o folclore. Por duas vezes recusei ser senador. Eu não queria deixar a província, meus alunos, porque sempre tive a fidelidade de professor. Daí esse inexplicável humor, esta alegria sem dinheiro e sem dívida, realizando um livro atrás do outro, sem pensar em editor. Apenas para não sentir o tempo. Ocupando-me para não ser ocupado, eu deixo as águas da política rolarem.
VEJA – O senhor vive fechado num universo muito particular, sem sair de casa. Não sente falta de cinema, TV e outros meios de comunicação?
CASCUDO – Não sinto muita falta de cinema porque acho que, de uns quarenta anos para cá, o cinema tornou-se objeto comercial, sem grande informação cultural. E eu conservo meus ídolos na memória. Prefiro ficar com eles. Tenho em casa um aparelho de TV, presente de Assis Chateaubriand, e sou às vezes telespectador. Como não ouço mais nada, porque graças a Deus sou gloriosamente surdo, vejo TV como um contemporâneo do cinema mudo, como uma reminiscência. Só não assisto a novelas para não me emocionar, não me suicidar, solidário com tanto sofrimento e mágoa que vejo naqueles inocentes. Minha casa vive cheia de rapazes e moças, estudantes. Isso para mim é um meio de comunicação, de procurar entender a mentalidade de hoje. Eu faço muitas perguntas a esses moços. Mas jornal diário eu não leio. Poupo minha vista para leituras que me interessam mais. Sou muito procurado. Às vezes transformo minha mulher em porteiro para poder trabalhar. Não sinto falta dos meios de informação mais complicados e modernos. O que lamento, às vezes, é ser informado demais. Porque, informado demais, as informações podem chocar-se e isso prejudica o meu trabalho.
Glória em casa, longe da Academia
VEJA – Quando o senhor vai se candidatar à Academia Brasileira de Letras?
CASCUDO – Eu jamais pertencerei à Academia. Quando estive no Rio, em 1969, fiz um discurso na Academia e proclamei-me seminoivo dela, sem a responsabilidade de convívio conjugal. Eu sou um provinciano incurável. Mesmo que eu continuasse morando em Natal, eu, acadêmico, teria a responsabilidade de voto, a que não sou muito chegado. Isso não diminui o bem que quero aos vivos e mortos da Academia. Eu gosto dela, mas não entro.
VEJA – E as glórias de um intelectual festejado? De quais o senhor gostou mais?
CASCUDO – Não tive momentos gloriosos, tenho tido é grandes surpresas. O meu nome na rua onde nasci em Natal, o título de comendador, as medalhas de guerra, de grande oficial do mérito militar e mérito naval. O que realmente me emocionou foi meu aniversário de setenta anos. Gente humilde, analfabeta, que obviamente jamais lera um livro meu, subiu as escadas de minha casa, para abraçar-me, trazendo-me de presente doce de coco e de jaca. Quer que um homem não se comova? A única coisa que eu gostaria de ser era santo, para fazer milagre para o povo. Mas eu, santo fazendo milagres, seria um perigo.
FONTE: Revista VEJA, Editora Abril, 19 de Abril de 1972.
Quando Gervásio Batista, fotógrafo de MANCHETE, acabou de bater as chapas de Luís da Câmara Cascudo, em sua velha casa da Av. Junqueira Aires, 377, em Natal, Rio Grande do Norte, pediu de repente ao gênio do nosso folclore: “Posso lhe dar um beijo?”. E antes que o autor de “Jangada” pudesse esboçar gesto ou palavra, beijou-o e foi embora. Depois perguntei ao Gervásio porque tivera aquele impulso e ele que nem lhe sabia o nome, explicou: “Senti que o homem é grande mesmo, compreende?”.
Quando eu disse a Luís da Câmara Cascudo que tinha vindo a Natal especialmente para entrevistá-lo, olhou-me meio desconfiado, os olhos expressivos se encheram de água, a cabeleira grisalha pareceu mais revolta e mastigando comovido o charuto (fuma dezoito deles por dia, em média) comentou: “Eu digo como o meu velho compadre José Mariano Filho - É mentira, mas é gostoso!”. E ficou a me olhar do fundo de sua velha cadeira de balanço. (“Sabe? Meu genro fez aquelas duas poltronas modernas, ali. Levou dois anos desenhando e inventando. Depois de prontas, eu descobri uma coisa: - São uma maravilha mas servem para tudo, menos pra sentar!”).
A CASA - É antiga. (“Nesta casa nasceu minha mulher, aqui me casei, aqui nasceram e casaram meus filhos”). Ao subir a escada de pedra a gente dá de cara com flores: “Rainha-da-noite”. E um aviso: “O Prof. Câmara Cascudo só recebe à tarde e à noite”. (“Eu sou o único homem feliz do Brasil, sabe, Pedro Bloch?”). Grande terreno com bancos e gaiolas, dois cachorros, o Ming e o Mambo. Dentro da casa, livros entulhando estantes e mesas, quadros invadindo todas as paredes, fotos autografadas de grandes de todos os tempos, recortes de revista com o retrato de um cardeal negro, porta com a pintura de um cangaceiro, estátua de S. Francisco de Paula olhando desconfiado certas imagens africanas e indígenas, gavetas entulhadas de anotações e obras em elaboração. Nas paredes, autógrafos de gente famosa e de amigos que por ali passam. Avesso à política, recebe líderes de todas as correntes. No mesmo dia podem ali estar o Francisco Julião e D. Eugênio Sales, o bispo. Graças a este homem singular, Natal é hoje o maior centro folclórico do Brasil. Cascudo é das mais respeitadas figuras de sua especialidade em todo o mundo.
O HOMEM - “A rua em que nasci se chamava lindamente Rua das Virgens. Em 55 pregaram na rua o meu nome: Câmara Cascudo. Escrevi desaforo, xinguei meio mundo. Mas a placa ficou lá. E na casa ainda me botam uma outra que diz que ali nasci eu, a 30 de dezembro de 1898. Conclusão: sou o único norte-riograndense vivo que não pode negar a idade. Sou da geração de Lampião e Luís Carlos Prestes. Também da de seis acadêmicos da Brasileira de Letras. Eu na Academia? Pra quê? O Afrânio Peixoto dizia que eu era um provinciano profissional e incurável. Não sou nem federal, nem estadual. Sou municipal. Fico por aqui. E quando saio sou como pombo-correio. Volto certinho pro meu canto. Daqui, só pro Alecrim” (Bairro do cemitério de Natal).
A HISTÓRIA - “Meu pai era o Coronel Francisco Cascudo, da Guarda Nacional. Coronel por afeto, de graça. Foi rico. Sou filho único. Pois o homem morreu pobre. Sabe por que? Porque deixou 1.500 afilhados. E ajudou a todos”.
E Cascudo me olha, ainda assombrado com aquela enormidade - “Não existe uma fortuna em Natal que não deva nada a ele. Eu é que andava de polainas, monóculo e bengala trazida do Egito. Papai, comerciante, era um homem tão extraordinário que manteve, do próprio bolso, um jornal, de 14 a 27, para que a geração nova pudesse escrever. A imprensa, naquele tempo, defendia até direito de greve! Escrevi meu primeiro artigo em outubro de 1918. Daí por diante nunca mais me restabeleci. Papai, apesar das poucas letras, era inteligentíssimo, resolvia qualquer eleição, derrotava qualquer governo. Mas era tão bom que, em vida dele, nunca ninguém chorou por sua causa. Quando morreu, sim. Foi o maior enterro que já se viu por estas bandas. Veja a grandeza de papai: sendo um homem prático, nunca quis fazer de mim um homem prático. Respeitou minha mania de livros. Pra manter este filho inútil só pediu uma coisa - que estudasse Latim. Estudei”.
- “Mamãe (Ana Maria) morreu no ano retrasado. Era ela a única pessoa do mundo para quem eu continuei sempre criança”.
Câmara Cascudo se manteve fiel ao seu estado. Fora dele o esperavam o Rio, a Academia, a projeção fácil. Mas, além do seu amor ao Rio Grande do Norte, o prendeu um pai que adoeceu e que não quis abandonar. Escolheu, então, por vocação e obrigação, algo que só pudesse ser feito em Natal - “Resolvi fazer a valorização da cultura popular brasileira”.
- “Estudei, em pequeno, em casa, com grandes professores, passei pelo Ateneu Norte-Riograndense, fui estudar Medicina na Bahia, em 1918 (Nesse tempo nem havia candomblé de verdade). Fui até o quarto ano. Depois fui vadiar, usar polainas e escrever em jornal. De 24 a 28 estudei Direito, no Recife. Em 29 casei com Dáhlia, nome de flor sem espinhos. Minha sogra está com 95 anos. É uma marquesa de fidalguia. Até os noventa tocava piano comigo, a quatro mãos. Tenho dois filhos, Fernando Luís, que você conhece (trabalha em publicidade e é compositor inspirado. Todo o Brasil canta Prece ao Vento, que compôs com Gilvan Chaves), e Ana Maria, que me deu uma neta: Daliana”.
FOLCLORE - Djalma Maranhão, prefeito de Natal, diz: “O Rio Grande do Norte tem seu folclore mantido, defendido, vivido. Câmara Cascudo, sem sair da província, com recursos pessoais, incompreendido durante certa época e até negado, iniciou sua campanha pelo folclore num ângulo original. Ajudei-o quando pude”.
Desde Animais Fabulosos do Nordeste a Vaqueiros e Cantadores até o monumental Dicionário do Folclore Brasileiro e obras mais recentes, às dezenas de trabalhos do grande estudioso, abrangendo vários setores da cultura, mas convergindo para a cultura popular, têm assombrado nossos maiores centros. Seu nome, Câmara Cascudo, é hoje quase folclore também.
- “Nunca me interessei pelo folclore. Ele é que se interessou por mim. Eu não achava graça no que se escrevia por aqui. Era tudo na base do “alto gabarito”. Eu achava interesse mas era no trivial, cotidiano. Comecei a fazer rodapés: “Ronda da Noite”. Acompanhava, a cavalo, a ronda policial e ia descrever o que vira: pileques e prostitutas, brigas e trapaças. O escândalo maior era isso ser feito por menino rico, bem. Depois vieram, naturalmente, as outras coisas que eu via: as “Festas dos Reis Magos”, tanta coisa! Mário de Andrade não podia compreender. Pensava que eu tinha sido levado à cultura popular pela erudição. Mentira! A cultura é que me levou a esta. (Por esta sala já passaram Juscelino e Villa-Lobos. Mas também aqui vieram Jararaca e Ratinho). Compreenda bem. Quando comecei a trabalhar, observei que as pessoas só viam o matutismo, o anedotário da cultura popular. Prometi a mim mesmo: Só escreverei de corpo inteiro. Estudo poesia sertaneja no duro. Por que isso? De onde veio? Por que baixa o violão? Por que isso e mais aquilo? Todo o trabalho é orientado no sentido de conservar o essencial e dispensar o acessório”.
Explica Maranhão: “Já em 43 ele dava as “permanentes” do conto popular: antiguidade, anonimato, divulgação, persistência, subentendendo-se oralidade como meio de transmissão. Foi Cascudo, em 1942, quem distinguiu História de Estória, quando se refere ao conto popular. Pouca gente se lembra disso”.
- “Neste trabalho, Seu Pedro, é preciso, em primeiro lugar, honestidade na colheita do material. Depois, é preciso confrontar, cotejar com outras regiões dentro e fora do país. Finalmente se pesquisa a origem. Por que o Rio Grande do Norte é tão rico de material? É que o povo defende há séculos o seu teatro, o seu direito ao divertimento, da maneira mais pura, quase sem enxertos. Dois estados valorizaram o seu folclore: o R. G. do Sul, com aquelas danças e o Rio Grande do Norte. Sabe por quê? Porque não era pra mostrar pra turista. O povo dançava pra si mesmo. Guardava dinheiro pro “Auto” no tempo de Natal. Por isso mesmo é dos mais puros aqui. Eu não deixava deturpar. Agora já não posso intervir tanto: foram pra Brasília e usam fitas e coisas, mas oitenta por cento ainda são autênticos. A verdade é uma só: onde aparece o turista, acaba o folclore. A não ser que esteja tão estratificado que não se deixe conspurcar: “se não gostar, não venha!”. De outro modo vai, de concessão em concessão, até se despersonalizar. Aqui nós temos os autos que existem no Nordeste com algumas variações, da Bahia ao Maranhão. Você conhece o Boi-Calemba? O Fandango (a Marujada) é um auto de temas portugueses, mas feitos todos no Brasil. Portugal não tem. Moçambique, por exemplo, existe entre nós e em Moçambique tal dança nunca viveu. Você assistiu o Bambelô. Viu que beleza? Pois é. Duas palavras cujo origem sempre me intrigaram: bambelô e vatapá. Não sei. Aliás, sou o único professor no Brasil que tem a coragem de dizer “não sei”, sem se julgar diminuído ou desmoralizado - “Não sei, não sei”, pronto, está acabado!. A Chegança veio em26. Foi um oficial que mandou encenar no Teatro Carlos Gomes e o povo gostou. Aliás todo o romanceiro partiu do alto pra baixo”.
- “Veja você se não é curioso: O Desafio, que é português, vem pro Brasil e se torna popular, e o fado que é eminentemente brasileiro se torna canção nacional em Portugal. Os portugueses que voltaram com D. João VI é que levaram o fado”.
- “A Severa (acreditem ou não!) nunca ouviu um fado na vida dela. Nem podia, sem mano! Quando os primeiros fados foram cantados ela já tinha morrido! Você pode afirmar isso com a minha responsabilidade”.
ATRAVÉS DO BRASIL - Câmara Cascudo me dá algumas das nossas preciosidades folclóricas:
- Em Natal, temos o Bambelô. Coco de roda, danças em círculo, acompanhados de instrumentos de percussão, fazendo figuras no centro da roda um ou dois dançarinos. Comum nas praias. Só se vê no Rio G. do Norte.
- No Ceará temos o Desafio.
- No Maranhão, o Bumba-Meu-Boi. A indumentária é assombrosa! Aliás os autos populares maranhenses superam tudo o que possa existir de parecido no mundo. Nem Diaghilef. E depois, a multiplicidade dos centros de interesse é impressionante. A coisa é tão fabulosa que o grande fotógrafo que me acompanhava perdeu vários momentos importantes. Ficou como que hipnotizado... E esqueceu de fotografar!
- No Pará temos as Festas de Nazaré.
- Em Manaus, que ninguém perca as festas de S. João.
- Em Recife, o frevo. No mundo, só em Pernambuco existe o frevo. É a grande alucinação do carnaval pernambucano. A multidão fica a ferver. E é justamente de frevura, frever, que vem a palavra frevo. Essa dança apareceu em 1909! Foi o Zuzinha, ensaiador da Brigada Militar de Pernambuco, quem estabeleceu a linha divisória entre o frevo e a polca-marcha. A coreografia é individual. Centenas de dançarinos, ao som desta música excitante, dançam diversamente. Instinto, improvisação, variabilidade. Vale tudo!
- Em Alagoas, os Reisados. Má música, enredo pobre, mas uma indumentária que nem Luís XV sonhou! Cascudo indaga: “Você já imaginou um chapéu que pesa seis quilos e ornado com 400 espelhos? Pois aqui está! Às vezes o chapéu reproduz toda uma Igreja!”.
- Na Bahia você pode ver a Capoeira, o Candomblé, Iemanjá.
Eu poderia ficar a noite inteira falando de coisas pra ver neste Brasil assombroso. Mas nada existe de mais impressionante que Os Guerreiros de Alagoas, que pertence ao ciclo dos reisados. Quando eles aparecem acaba tudo. Um homem do LIFE parou assombrado olhando para mim. Cadê jeito pra bater a chapa? A mão tremia de emoção”.
- “Você sabia que nosso cantador nordestino é o único no mundo que vive a fazer versos e cantar? Em todos os cantos da terra isso já desapareceu.
E a jangada? É a mais antiga embarcação conhecida pelo homem, que desapareceu mesmo na Polinésia, onde existiu comumente. Duas mil jangadas sustentam famílias do Ceará ao Sergipe. E a rede de dormir? Mais de meio milhão é produzido por ano. Na rede milhões de nordestinos nascem, vivem e morrem”.
- Sou professor de Direito Internacional da Universidade e no Estado me aposentei de Terceiro Consultor-Geral, com 36 anos de serviço”.
O BRASIL - “Quando nasci o Brasil estava à beira do abismo. Passados os anos compreendi que uma das duas coisas deve ter acontecido: ou o abismo fechou ou o Brasil alargou. O que está se processando no Brasil é uma fase lógica com a presença dos problemas mundiais que aqui arribaram. Falar em problemas brasileiros, em abismos, é ignorar o que se passa e passou no resto do mundo. Desvalorização da moeda, desajustamento psicológico, tudo isto são ciclos. Antes de tudo é preciso acreditar que estamos aqui numa missão humana e que nada disso é castigo nem penitência acima de nossas possibilidades de resolução. O melhor produto do Brasil ainda é o brasileiro”.
SUPERSTIÇÕES - “Sim. Desconfio que sou supersticioso. Não é bem o pé direito, nem o 13, nem o gato preto. Pesquiso superstições, mas devo ser supersticioso. Napoleão, Goethe e Vitor Hugo eram supersticiosíssimos. Alguém já disse que o jumento não tem nenhum superstição”.
VILLA-LOBOS - “Quer saber de uma coisa engraçada? Quase sempre meus encontros com Villa-Lobos eram no estrangeiro. O grande bem que Villa me queria era... Porque eu nunca lhe falava em música. E o mais assombroso é que fui, durante vinte anos, professor de História da Música!”.
BOCA DO POVO - Depois começamos a falar de frases do povo, coisas do povo, e Cascudo me mostra umas frases deliciosas como: no Ceará quem faz coisa impossível “dá nó em pingo d’água”.
Vejam o sabor destes ditos: “Boca calada é remédio”; “Defunto de esteira é que faz visagem”; “Gato com fome come farofa de alfinete”; “Silêncio também é resposta”; “Queda de velho não levanta poeira”; “Em terra que não tem carne, espinha de peixe é lombo”; “Cada um com a sua certeza”.
Vejam estas comparações: “Velho como o chão”; “Apertado que só pinto no ovo”; “Encarnado como fita”.
VIAGENS - “Em 1909 viajei pela primeira vez com meus pais. Sem passaporte. Agora é diferente: a gente tem que carregar um negócio pra provar que a gente é a gente. Se eu viajei muito? Viajei seis passaportes”.
HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO NO BRASIL - “Em 1940 me apaixonei pela alimentação. Não estava pensando em hidratos de carbono ou proteínas. Queria era a história da comida. Tentei seduzir Josué de Castro para escrevermos juntos a história da cozinha brasileira. Mas ele estava mais preocupado com o que o homem deixa de comer, com a fome. Continuei com uma teima de jumento jagunço e pesquisando. Os povos escolhem determinados alimentos e, mais tarde, a ciência vem provar que o povo tinha razão, embora, na hora, estivesse contrariando a ciência. Chateaubriand, esse homem fabuloso a convite de quem eu já havia escrito Jangada e Rede de Dormir, me convidou para escrever uma História da Alimentação no Brasil. Quem resiste a essa força da natureza que se chama Assis Chateaubriand? O primeiro volume já está no prelo, na Brasiliana. O segundo está pronto, e o terceiro, em andamento. Salomão já disse: Todo o trabalho do homem é para a sua boca”.
VER PARA CRER - “Eu estava desconfiado de toda minha sabedoria, ao começar o trabalho. Queria ver as áreas de origem dos escravos que tinham chegado ao Brasil. A comida devia ser, na essência, a mesma. (Uma das forças aculturativas mais poderosas e sutis é justamente a cozinha. Quando um emigrante começa a gostar da cozinha local é porque está conquistado pela nova pátria. Os cozinheiros franceses têm feito pela França tanto quanto os escritores e diplomatas. Mas não é a cozinha de requinte a que dura. Para o etnógrafo o que interessa é a culinária normativa, ordeira e pobre a de todo-dia, sem enfeite).
- Corri a África e fiquei doutor em negro. Eu queria ver o que ele planta, colhe, come e dança. Voltei encantado. Fui ver a criatura humana em sua mais encantadora naturalidade. A Europa é uma constatação (a gente já a conhece antes de ir); a África é uma revelação. Possui cidades supermodernas e, em outros aspectos, está no passado: canta século XV e passeia de lambreta. Imagine que o mesmo negro, que, tatuado e de lança na mão, me aparecia naquele ritual belíssimo da véspera, surgia, agora, falando cinco línguas, piloto do meu avião e com o ar mais civilizado do mundo. O negro é inteligentíssimo. Vive sua cultura. Tem mercado para o seu artesanato e cria coisas admiráveis”.
- “É preciso compreender bem a diferença entre civilização e cultura. Cultura é o conjunto de técnicas que podem melhorar e facilitar a produção, tornar a vida mais fácil, a terra mais produtiva. Civilização é uma capitalização da sensibilidade através de gerações. É a fisionomia das culturas do tempo”.
- “Você sabe que um ministro é descendente de um escravo brasileiro que voltou para a África?”.
DESPEDIDA - Câmara Cascudo é membro de não sei quantas associações, academias, dono de não sei quantas honrarias e títulos. Mas o mais humano e curioso é o de Presidente de Honra de “Os Inocentes”, um grupo que assalta as casas em Natal e carrega com as bebidas. Trabalha sempre em casa. Quando está concentrado fica se balançando na rede até amadurecer idéia. Gosta de música de Caimi Ari e Noel.
Cascudo (tratado pelos íntimos de Cascudinho) ordena à fiel criada Anália quando lhe confesso minha sede: “Traga o copo de prata de meu pai, que o Pedro Bloch vai beber nele. Água só em copo de prata”.
Diante do espanto de Anália percebo o tamanho da homenagem que me presta.
Luís da Câmara Cascudo me acompanha até o carro que me aguarda, descendo a escadaria de pedra. Ao lhe reafirmar que foi ele quem me trouxe a Natal, seus olhos se enchem de água outra vez e me sufoca com um abraço agradecido, como se sua grandeza não justificasse até a viagem à Lua.
O chofer que me leva, contudo, ao divisar pelo espelho do carro, a figura do grande brasileiro, que me acena de longe:
- Este homem é grande, doutor!...
E conta:
- Às vezes, quando ele está cansado de trabalho, venho apanhá-lo e, de amigo em amigo, de conversa em conversa, vamos varando a noite. De manhãzinha eu trago ele pra casa. Mas cadê coragem de cobrar? É a pior hora, doutor. Cobrar desse homem. Pode?
E olha com a mesma cara do fotógrafo Gervásio Batista quando pergunta ao velho Cascudo:
- Posso lhe dar um beijo?
O que o Gervásio sentiu é que estava distante do Brasil. Gervásio não beijou Cascudo. Beijou o próprio folclore brasileiro, em sua beleza, em sua expressão maior e mais pura.
Entrevista a Jomar José
Fotos de Iremar Araújo
A sofisticada tecnologia empregada na conquista espacial não evitou que o primeiro homem a pisar na Lua o fizesse com o pé direito, como o faziam os antigos romanos, supersticiosamente, ao entrarem nas casas de seus amigos.
Como a Rainha Jesabel, quarenta séculos antes de Cristo, as mulheres continuam a pintar as pálpebras de azul e a juventude revive a moda da época de Luís XIII, com suas vestes multicoloridas, barba e cabelos longos. Os desenhos paleolíticos e neolíticos se repetem diariamente nas criações espontâneas do povo, apesar do progresso acelerado dos dias atuais.
A cultura popular não morre, o folclore persiste com a mesma força de antes, em sua universalidade. Estará, porém, a cultura popular brasileira ameaçada pela imposição vertical da cultura de massa, como concluíram os participantes do III Seminário de Folclore e Cultura Brasileira, realizado recentemente no Guarujá?
Não. Não há esvaziamento, nem estrangulamento, nem coisa nenhuma. O folclore não é brasileiro; é um patrimônio de todos os povos. A cultura popular é atmosfera normal em que o homem respira e da Universidade da Vida partem as ciências sistematizadas. Os elementos se combinam, as formas se alteram, mas a substância não muda. Como diz Luís da Câmara Cascudo nesta entrevista exclusiva ao O POTI:
Como o Sr. resume a sua experiência de 57 anos de pesquisas do folclore em suas manifestações multiformes?
- Depois de tantos anos de leituras diárias, raciocínios, posso resumir a minha atividade no tocante às pesquisas e divulgações da cultura popular no seguinte esquema, o mesmo que publiquei na “Civilização e Cultura”, em 1972: ao lado do estudo sistemático, ministrado nas escolas, existe um outro estilo unicamente oral que é ministrado pela convivência, na continuidade da vida familiar até à morte. Ao lado das ciências sistematizadas e tornadas de uso obrigatório, em legislação, permanece o mundo dos conhecimentos tradicionais que, raramente modificados, acompanham o homem desde o seu nascimento nas manhãs do paleolítico. A Física, a Química, a Eletrônica, a Biologia, a alta Matemática, a Bioquímica são ciências que evoluíram no tempo partindo de premissas populares.
Muita coisa nasceu da arruda, da cidreira, do agrião. De outro lado, o homem vai à Lua e muda órgãos, transplanta coração, mas mantém o gesto de setenta, oitenta séculos, significando o que ele não pode expressar pela palavra. Quem é que legislou e tornou obrigatório o beijo, o abraço, o aperto de mão, a continência, a saudação tocando na cabeça, todas as regras de cortesia e de afeto? E também a ciência da habitação, do caminho, da alimentação, a literatura oral que depois da imprensa se torna literatura de cordel. Assim, ao lado da Universidade impressa, grafável, eu ponho a Life University da nossa convivência diária, da vida através do tempo.
Essa sua opinião, formulada com autoridade de mestre no assunto, parece contrariar outras opiniões, inclusive as de outros mestres, não?
- Repito o que disse há pouco: ao lado da Universidade grafável, eu ponho a Life University da nossa convivência diária. Esta é a diferença entre as minhas pesquisas e o que vem sendo estudado por franceses, americanos, alemães e ingleses. Eles estão adstritos à lúdica, aos divertimentos, a um pouco de literatura oral – os contos populares, o teatro tradicional. Raramente a superstição, que eu penso ser anterior ao homem.
Mas pergunto: e o artesanato? E as indústrias sem máquina? E a mímica? E alimentação? E a maneira de vestir? Para que serve a gravata? Por que bater palmas é um aplauso? No mundo inteiro...e já perderam a significação de sua origem.
Talvez a diferença resida no fato de o folclorista Câmara Cascudo jamais ter deixado de conviver com o povo, enquanto pode.
TUDO É DE TODOS
- Esses estudos, que comecei praticamente em 1918, vendo e convivendo com o povo, usando a minha reminiscência do que trouxera do sertão, estão em quarenta livros que documentam a minha memória, memória que é também a inteligência do povo. Ao lado da História, da Geografia, da Literatura e da Arte, que têm sido vítimas de minhas investigações, a cultura popular tem sido incontestavelmente uma atividade que encheu de alegria a minha vida e ainda preocupa e enche as horas de minha velhice.
Tudo pertence a todos culturalmente e por isso eu fui fiel à ciência que amei, isto é, a ciência tradicional, hereditária, tanto na parte jurídica, artística, popular. Basta ver o “Dicionário do Folclore Brasileiro” e “Civilização e Cultura”, onde resumo o que aprendi vivendo.
A cultura de massa, imposta de maneira tão vertical, não estará comprometendo a existência do folclore? O que se deve fazer, praticamente, para preservar certos aspectos do folclore que o progresso gradativamente está destruindo?
- Nas modificações, estrangulamentos, desvios do folclore, posso dizer – como tenho 77 anos e fui professor de História – que ninguém desvia uma enchente, um maremoto, nem o ar atmosférico. A cultura popular é a atmosfera normal que o homem respira. Não há estrangulamento, nem coisa nenhuma. O que pode haver são imposições efêmeras, como se o Governo decretasse, suponhamos, que nós cumprimentássemos fazendo careta ou estirando a língua. Éramos obrigados a fazer, legalmente, mas, como estirar a língua e fazer careta são conhecimentos anteriores e significam outras coisas, voltaríamos insensivelmente à base.
Nada pode o homem contra a natureza. E a sua natureza é esta. Lembro que aqueles que viram os desenhos paleolíticos e neolíticos, de idades incalculáveis, ficarão sem resposta quando virem que eles permanecem, em larga porcentagem, nos desenhos infantis e nas criações autônomas do povo.
CULTURAS SUCESSIVAS
Quer dizer que avançamos sem perder os vínculos com o passado, ou mais precisamente, voltamos diariamente ao passado pela repetição ou conservação dos hábitos?
- Uma vez, em 53, eu voltava da Europa de avião e, como a temporada fora intensamente de procura de documentação de cultura popular, especialmente supersticiosa e artística, enquanto voávamos sobre o Atlântico voltando para o Brasil – lembre-se desta frase: voávamos sobre o Atlântico voltando para o Brasil; não se trata de caravelas do século XVI, nem de transatlântico. É um avião de jato, a três ou quatro mil metros de altura, a uma velocidade incrível sobre as nuvens – chamei a atenção de um amigo, que viajava ao meu lado, para que visse que as senhoras super-requintadas e civilizadas, voltando da Europa, estavam cobertas de jóias e enfeites que repetiam os amuletos anteriores à Idade Média. Não tinha mudado ainda. Assim como nós encontramos a Rainha Jesabel, quarenta séculos antes de Cristo, pintando suas pálpebras de azul, a mulher de hoje continua pintando as pálpebras de azul. Por que? Pra que?
E se diz: isto vai desaparecer. É ótimo. Também assisti um filme americano anterior a 69 (na TV), em que os homens foram à Lua como se a Lua tivesse atmosfera terrestre – não precisavam daquela aparelhagem para respirar. Não. O homem é uma realidade. É o que chamamos: as culturas são sucessivas.
A pessoa que está lendo a minha entrevista, lembre-se do que era moda quando ela era menino, quando era rapaz ou moça, e o que é agora. Lembre-se que era a autocrítica de 1919, 1929, que impunha a moda. Hoje, essa autocrítica é que continua impondo outra moda. Agora essa outra moda é a do século XVII.
Neste vai-e-vem dos costumes, podemos dizer que a cultura popular é imutável?
- Nós temos costumes e posições que são anteriores ao gênero humano. Eu creio não na imutabilidade da cultura popular, mas na sua eternidade, na sua perenidade, como da fisionomia humana.
O processo da concepção não mudou até hoje e creio que é muito difícil o homem e a mulher aceitarem um outro processo de gestação que não seja aquele que Eva e Adão conheceram.
FOLCLORE UNIVERSAL
Sabemos que muitos estudiosos afirmam que não há coisa mais universal que o folclore, levando em consideração os elementos que o compõem, mas também não há nada mais regional que o folclore, tendo em vista as combinações desses elementos. Neste caso, o folclore nacional estaria ameaçado pela influência cada vez mais crescente das “combinações” que nos chegam de fora?
- Pergunta-me sobre as modificações do chamado folclore nacional. Começa a pergunta por me assombrar. O que é nacional em folclore? O que é indígena, africano, português? O que é que só existe no Brasil? Qual é o costume, o mito, a lenda, a criação, que só nós brasileiros possuímos? Ora, justamente esse velho professor teve a petulância de escrever, há vinte anos, que os mitos, as lendas e as estórias mais populares são as mais universais. São aquelas que estão em toda parte.
Qual é a estória de trancoso, o conto mais popular do Brasil? É “Maria Borralheira”. Todos nós conhecemos a estória de Maria Borralheira. E está em todos os idiomas essa estória, em todos os idiomas do mundo. Agora uma estória bem nossa, uma anedota de papagaio, uma coisa qualquer, sabe-se no Amazonas e não se sabe no Rio Grande do Sul. E uma característica do folclore é a sua comunicação.
Essa idéia de folclore nacional é o mesmo que se dizer mulher nacional. Antes de tudo mulher e depois brasileira. O que é que o brasileiro modifica no sexo? Por que é que o brasileiro vai modificar o folclore? Mas modifica em que? Naturalmente a miscigenação das culturas no Brasil, fazendo um Carnaval que realmente não é parecido com nenhum, fazendo com que a Umbanda, o Xangô, não pareça totalmente com os países de onde veio – com a Nigéria e uma parte dos urubas, nagôs – nos faz pensar que essas modificações alteram a substância. Eu já repeti e repito: o que é humano muda, será que muda? Ou o progresso é uma espécie de espiral em que as voltas passam paralelas mas sempre ascendentes?
Se as modificações do folclore brasileiro tivessem o condão de transformá-lo, os rapazes e as moças de 1975 também se transformariam, pois estão puramente na época de Luís XIII, de Richelieu, um pouco anteriores à maioridade de Luís XIV. Entretanto, esse rapaz de cabeleira longa, barbado, com essa indumentária policolorida que eu adoro – é preciso dizer que eu sou de acordo inteiramente – viaja de avião, toma sorvete e entende de assuntos científicos. A barba, o bigodão, a camisa encarnada e a calça verde, os hábitos não alteraram a sua mentalidade receptiva. Eles continuam estudando e sabendo das coisas, parte porque lêem e parte porque ouvem.
Assim, pois, para que criarmos um problema onde não há? É inútil. Quando o meu interlocutor estiver na minha idade porá a mão no queixo dizendo: ora, voltou tudo quanto era no meu tempo de rapaz. No meu tempo de rapaz, a calça boca de sino, que era um sucesso e ao mesmo tempo um ridículo, não voltou para homens e mulheres? Por que voltou? Ninguém sabe das voltas da moda.
Olhe, veja o jardim e arborização. A árvore podada pelas exigências do gosto, o jardim de La Notre, não muda a essência vegetal. A árvore podada pode ter a forma de taça, de dragão, de seio de mulher, mas continua a mesma árvore. Desde a criação do mundo, a pitombeira só dá pitomba. Não houve ainda processo que convencesse a pitombeira que devia dar maçã ou uva.
O gênero humano dá as suas figuras, mas algumas o acompanham como o ritmo respiratório. Qualquer astrologista dirá tudo quanto eu estou dizendo: encontrar um pormenor, uma casa, um desenho que não têm idade no tempo. O homem é contemporâneo do futuro, mas também é uma eterna sobrevivência...
Agora, só recordações.
Luís da Câmara Cascudo, glória do Rio Grande do Norte, divulgador da cultura popular, comendador, pesquisador, escritor, sócio honorário de associações nacionais e internacionais, portador de medalhas de honra ao mérito, homenageado com o seu nome marcando ruas, bibliotecas e museus, apresenta-se àqueles que já o conhecem (ainda que superficialmente): “Nasci na Rua das Virgens, e o padre João Maria batizou-me no Bom Jesus das Dores, Campina da Ribeira, capela sem torre mas o sino tocava as Trindades ao anoitecer. Criei-me olhando o Potengi. Longe, os mangues da Aldeia Velha, onde vivera, menino como eu, Felipe Camarão. Havia corujas de papel no céu da tarde e passarinhos nas árvores adultas plantadas por Herculano Ramos. Natal de noventa e seis lampiões de querosene. Santos Reis da Limpa, em janeiro. Santa Cruz da Bica, em maio. Senhora d’Apresentação, em novembro. Farinha de castanha e carrossel. Xarias e Canguleiros. Natal que se apavorou com o holofote, enchendo as igrejas de bramidos e arrependimentos. Auta de Souza embalou-me o sono. Pedro Velho pôs-me na perna. Vi Segundo Wanderley declamar. Ferrreira Itajubá cantando. Alberto Maranhão passeando a cavalo, manhã de domingo. Tinha treze anos, quando veio a luz elétrica. Festas no Tirol. Violão de Heronides França. Livros. Cursos. Viagens. Sertão de pedra e Europa.
Nunca pensei em deixar minha terra!
Queria saber a história de todas as coisas do campo e da cidade. Convivência dos humildes, sábios, analfabetos, sabedores dos segredos do mar,das estrelas, dos morros silenciosos. Assombrações. Mistérios. Jamais abandonei o caminho que leva ao encantamento do passado. Pesquisas. Indagações. Confidências que hoje não têm preço. Percepção medular da contemporaneidade. Nossa casa do Tirol hospedou a Família Imperial e Fabião das Queimadas, cantador que fora escravo. Intimidade com a velha Silvania, Cebola Quente, alforriada na Abolição. Filho único de Chefe Político, ninguém acreditava no meu desinteresse eleitoral. Impossível para mim dividir conterrâneos em cores, gestos de dedos, quando a terra é uma unidade com sua gente. Foram os motivos de minha vida, expostos em todos os livros.
Meu povo tem a mesma idade para o interesse e a valorização afetuosa”.
Agora, passados 57 anos de vida intelectual, 77 nos de idade, Câmara Cascudo procura, entre baforadas com seu charuto inseparável, encher suas horas recordando o passado em elucubrações profundas que já não podem se transformar em livros, em aulas, em conferências.
Surdo, o mestre foi condenado à pena de não mais ouvir o barulho dos folguedos populares, as estórias de trancoso, antes recolhidas junto ao povo. Debilitado e acometido de labirintite, deixou de ler e escrever, contentando-se com as imagens mudas que surgem no vídeo de um TV colorido, o afeto da mulher e dos netos, cujos brinquedos e desenhos se misturam às peças raras de seu acervo folclórico.
Agora são apenas recordações. Do Coronel Cascudo, seu pai, e da preta velha Bernardina Nery, que o viu nascer em 30 de dezembro de 1898. Da professora Totônia Cerqueira, sua primeira mestra e do curso de Medicina na Bahia, que trocou pelo de Direito no Recife. Do primeiro artigo de jornal em “A Imprensa”, de 18 de outubro de 1918, e do primeiro livro: “Histórias que o Tempo Leva”. Da elegância com que se vestia no tempo de rapaz e da visita de Mário de Andrade a Natal, em 1928. Da denúncia feita por um colega ao Governador Juvenal Lamartine porque ele estava “contando estórias de Lobisomem aos alunos durante aulas de História” e do mandato de Deputado Federal de dois dias, cassado que foi pela revolução de 1930. Da fundação da Sociedade Brasileira de Folclore, que ainda dirige, e da recusa a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, para não se afastar de Natal.
Agora unicamente recordações e homenagens que chegam para se juntar às de ontem sem que o homenageado possa ao menos agradecer com um discurso em sessão solene. Agora a III Festa do Folclore Brasileiro, marcando seus 57 anos de folclorista, com bilhete do Ministro Ney Braga, desculpando-se por não poder vir a Natal. Agora homenagens. Que não sejam as últimas.
Câmara Cascudo disse tudo sobre o povo brasileiro
Para o sociólogo Gilberto Vasconcellos*, o grande folclorista Luís da Câmara Cascudo, autor de mais de 150 livros, recém-falecido em Natal, legou ao nosso país uma didática sem paralelo.
Interação– Qual a importância de Luís da Câmara Cascudo para os professores do Brasil?
Vasconcellos – É realmente enorme, tanto para os professores adultos quanto para os alunos meninos, antes de tudo porque durante 40 anos foi ele professor em Natal, primeiro no Liceu, depois na Universidade do Rio Grande do Norte. Outro dia soube que um texto sobre Luís da Câmara Cascudo fora recusado por uma renomada revista de divulgação científica. Esse tipo de atitude imbecil é que impede a difusão do pensamento de Câmara Cascudo junto aos professores e estudantes, que ficam ignorantes da sabedoria do povo concentrada no velho erudito mais genial das ciências humanas.
Interação- Há cientistas que alegam que Cascudo não é científico.
Vasconcellos – Eu desafio publicamente quem apontar um outro cientista no século 20 que se lhe compare; também duvido que haja outro escritor igual, no romance, na poesia ou no ensaio. Isso para não falar da crítica literária, musical, filosófica. Cascudo é o melhor de todos. No entanto ele morre no ano de 1986 completamente desapercebido pelos homens de cultura do País. Um vexame para a inteligência nacional. Os donos da ciência não estão interessados no trabalho dos professores primários, pois a obra de Cascudo poderia alfabetizar os meninos do Brasil através da ciência do povo.
Interação – Qual o motivo dessa atitude?
Vasconcellos – Além de dizer-se provinciano incurável, Luís da Câmara Cascudo costumava repetir que continuaria professor mesmo depois de morto. E de fato ele nos legou uma didática sem paralelo na história das ciências do homem. Livros como “CIVILIZAÇÃO E CULTURA”, “DICIONÁRIO DO FOLCLORE BRASILEIRO”, “ANÚBIS”, “REDE DE DORMIR”, contêm ensinamentos e informações sobre o dia-a-dia do povo brasileiro. Se alguém quiser saber, por exemplo, se jacaré dorme à noite, se a jangada tem parafuso, ou de onde vem o lobisomem, ou como nasceu o Saci Pererê, basta consultar Cascudo; ele informa tudo com a mais rigorosa objetividade e a graça de escrever bem. Sua biografia pode ser resumida no seguinte: ensinou e escreveu. Nada mais lhe sucedeu.
Interação – Há uma razão para que a sua obra seja sabotada?
Vasconcellos – Antes de tudo, trata-se do imperialismo do método. Nunca Luís da Câmara Cascudo se arrependeu de não ter tido método em seus 150 livros; ninguém até hoje apontou-lhe um erro, um defeito, um deslize que fosse, o que causa inveja aos medíocres. Cascudo é um dos melhores escritores da literatura brasileira. Como ocorre muitas vezes, o doente é sepultado vivo porque o médico garantiu que ele estava morto. Graças a Deus, Cascudo morreu como um passarinho. Boa morte. Nenhuma hipertonia da “mala muerte”, ou da morte macabra. Ele morreu de morte morrida. Natural. Se a ciência não for útil ao homem, não presta. Utilidade pedagógica está no entendimento; este vive de sua comunicação. Mas é preciso ser um asno completo para não entender uma página de Cascudo. Apesar disso tudo, morre o sábio mais velho do século, mais velho do que o século, e a imprensa não sabe o que dizer; assim como a Academia de Letras, o Ministério da Cultura, do Planejamento, da Tecnologia não dizem nada. E há nadas que são tudo.
Interação – Nossos intelectuais gostam mais de Sartre ou de Borges?
Vasconcellos – Se estivéssemos num outro país menos cruel em relação aos seus gênios, ele deveria ser o professor oficial do MEC, espécie de Máster Plan cultural, geografia do folclore, do Acre ao Rio Grande do Sul. Vamos supor que um Hegel ou um Marx escrevesse tão bem quanto o nosso folclorista; o Brasil não aproveita seus melhores talentos. Cito sua auto-definição: “É eterno e autônomo como uma nuvem”.
Interação – Em sua opinião o brasileiro então admira charlatões sabidos?
Vasconcellos – O problema é que o Presidente da República prefere Borges; assim como o especialista valoriza irremediavelmente a especialidade, a coruja gaba o toco em que mora. Acontece que Cascudo escreveu sobre o modo de vida cotidiano, o normalismo funcional de cada dia sobre o “uomo qualunque”. A memória do povo brasileiro, toda ela, está contida em sua monumental obra, realizada de 1918 a 1980. E, como ele diz, a memória é a imaginação no Povo. Se algum governo dessa Nova República se interessar pela comida, o que o povo de fato come, basta abrir as páginas de “HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO NO BRASIL”, dois volumes, livro magnífico que demorou mais tempo do que “O CAPITAL” de Marx para ser escrito. Em termos de pesquisa na cultura popular do Brasil, ele sem dúvida é imbatível, insuperável. Humor, profundidade; assuntos inacreditáveis tais como o prelúdio da cachaça, coisas que o povo diz, conceito sociológico do vizinho, a vaquejada nordestina, a jangada, o limão verde, o prestígio da mulher feia, o ministério da antipatia, o senhor caco de vidro, o peixe boi cordial, o direito da pulga, a sedução do automóvel, o salário do progresso.
Interação – Para que serve, afinal, conhecer essas crendices e bicharadas?
Vasconcellos – O Lobisomem, o Saci Pererê, o Curupira, o Papa Figo, o Diabinho da Mão Furada, não são crendices inventadas por Cascudo, existem há milênios no mundo. Ele teve o nobre trabalho de introduzir o regional no universal e vice-versa. Em qualquer lugar, o povo é um clássico que sobrevive. Super-stitio significa justamente aquilo que sobrevive. Ora, o folclore é uma disciplina que trata da contemporaneidade do milênio; o “folk-lore” é a “sabedoria do povo. Saber que se sabe, eis o importante. Não importa nem o espaço nem o tempo”.
Interação – E o folclore e a modernidade?
Vasconcellos – Essa histeria de modernidade é uma grande bobagem; nenhum pensador genial a utiliza como categoria de importância. Claro que haverá um folclore dos astronautas, assim como já existe um folclore dos choferes de automóvel e pilotos de avião; o astronauta desce e sobe a Lua com uma figa no bolso, os transatlânticos não dispensam até hoje o número 13 em suas poltronas; os nossos indígenas, depois de cinqüenta anos de descoberto o Brasil, só saiam à noite com um tição aceso na mão. Inútil pensar que o desenvolvimento industrial anula o folclore, ou que a superstição seja coisa de desinformados; superstição existe em Goethe ou num caiçara sem INPS. Fatalmente existirá, se é que já não existe, um folclore da secretária eletrônica. As novidades no mundo são antigas: vinte mil anos. Dar adeus, saudar agitando a mão não tem idade, mostrar a língua era desaforo três séculos antes de Cristo, em Roma. Folclore incomoda os falsos doutores e os pedantes porque nele, no folclore, em Don Luís Cascudo, o tempo rola sem História. Aí está a chave de tudo, o labirinto, a diáspora. Os apaixonados pela História não suportam a permanência do tempo sem história, assim como os jornalistas não gostam de serem chamados de inventores de conjunturas. O resultado disso é que medra um mau humor generalizado em relação ao “lore” do povo.
Interação – Por que não existe a disciplina do folclore nos currículos escolares?
Vasconcellos – Acho que ninguém no Brasil sabe o que é folclore, tratado de modo pejorativo em Brasília, na Unicamp, na vanguarda, no “high life”; um intelectual qualquer diz que na obra de Luís da Câmara Cascudo não há teoria. De minha parte, estou convicto de que ele é o único filósofo brasileiro, citador inigualável: nas praias do Rio Grande do Norte poeta é sinônimo de bicho de pé.
Interação – O Brasil merece Luís da Câmara Cascudo?
Vasconcellos – Merecer, o Brasil merece, mas quem não merece são os brasileiros responsáveis pela divulgação da ciência, as autoridades educacionais, os burocratas da cultura, a pseudo-erudição. É justamente essa elite intelectuária que odeia o País, que não quer tirar o Brasil do serviço, a elite que se relaciona com o país através do que dita o comércio de Berlim ou de Nova York, macaqueando as vulgaridades efêmeras das modas, comendo gato por lebre.
Interação – Cascudo foi um homem feliz?
Vasconcellos – Claro que foi feliz. Só escreveu o que quis. Não se importava se era ou não lido por um jovem da USP ou do Museu Nacional. Eu acho que ele foi, no Brasil, o único de quem se pode afirmar que tivesse íntimo, vida íntima, interior. O poeta russo Maiakovsky percebeu que no Brasil havia um brasileiro feliz. Era ele.
Interação – E a sua relação com o dinheiro?
Vasconcellos – Foi menino rico, adolescente também rico, mas na mocidade, estudando no Recife, em Salvador, no Rio, fica pobre; seu pai perde a fortuna, volta para Natal, sendo obrigado a trabalhar e trabalha a vida inteira até se aposentar como professor universitário. Sua mulher, D. Dáhlia, nome de flor sem espinhos, a quem ele dedica o “DICIONÁRIO DO FOLCLORE BRASILEIRO”, conta que o marido não se importava nem com os direitos autorais dos livros. Já na velhice, evoca Mestre Cascudo um dia terrível em que uma agência imobiliária lhe oferece dinheiro para comprar a casa; enraivecido, o folclorista bota porta afora os mercenários: “para que eu quero dinheiro?”. Justificada ira, pois o sobrado da Rua Junqueira Aires, em que morava, não era senão a casa em que sua mulher havia nascido. Repetidas vezes cita ele o conhecido aforismo anglo-saxônico segundo o qual tempo é dinheiro, acrescentando: “mas dinheiro não é tempo”. Recebendo várias propostas sedutoras de emprego fora de Natal, inclusive de Getúlio Vargas e de Juscelino Kubitschek, ele as recusa; tampouco se empenha em fundar instituto de pesquisa ou fundação que tem enriquecido muita gente nas ciências sociais. Trabalhou sozinho, sem secretária, apenas com os olhos e os dedos, escrevendo direto na máquina de escrever.
Interação – E a vaidade dele, como autor?
Vasconcellos – Acredito que um escritor que demora 40 ou 50 anos preparando alguns livros não se preocupa com a indolência do nosso público intelectual. Ele dizia que sua função de escritor era igual à de um mamoeiro: produzir mamão. O resto é silêncio.
Interação – Depois de Cascudo morto haverá um interesse pela sua obra como política cultural?
Vasconcellos – Eu não sei se na verdade ele está morto como qualquer outro morto porque ninguém viajou tanto no pós-mortem. Não conheço outro autor que tivesse vivenciado aquilo que o Padre Antonio Vieira chamou de privilégio do morto. O nome de um livro seu tão deliciosamente estranho como “ANÚBIS” significa a Casa Eterna dos Mortos. Aí está dito, e repetido em outros textos, que a morte existe; os mortos não. Nascido no ano em que nasceram Luis Carlos Prestes e Lampião, Cascudo viu muita gente morrer, mas ele não tinha medo de morrer. Se os mortos não dão medo, tratai deles. Nesse espelho, o morto é o juiz que revela os vivos. Ninguém quererá ficar mal com ele após sua morte. Existe uma santa continuidade entre sua vida e sua morte. O morto ouve melhor, a morte é surda. O pajé Von Kaskudo está lá no céu com a varinha na mão.
Interação – E a atualização da inteligência neste País?
Vasconcellos – A chamada ciência política precisa urgentemente descobrir esse gênio do folclore que foi 30 anos professor de Direito Internacional. À parte a catapora da popularidade forjada pelos meios de comunicação de massa, é inconcebível uma constituinte no Brasil sem o folclore de Luís da Câmara Cascudo. Um atraso. Um erro. Um crime. Uma constituinte sem a ciência do povo é falha; falta-lhe o popular, além do erudito. Infelizmente, Cascudo tem sido maltratado pela Nova República. Eu soube que o Presidente Tancredo Neves prometera visitá-lo, mas não foi porque não deu tempo. Por outro lado, o Ministério da Cultura tem uma visão muito primitiva e preconceituosa do folclore, como se fosse uma pilhéria. Se o negócio for construir uma democracia sem adjetivo neste País, então é o folclore de Luís da Câmara Cascudo que oferece a síntese do erudito e do popular.
Interação – Mas não há perigo do populismo?
Vasconcellos – Convém não esquecer que o folclore é o popular, mas nem todo o popular é folclore. Assim como já se sonhou um dia em materializar a obra teórica de Karl Marx, seria evidentemente uma maravilha total se a sociedade brasileira fosse um reflexo da “gaya sciencia” de Luís da Câmara Cascudo, o peregrino das Américas, de quem se pode dizer que estudou na universidade do tempo, leu livros da experiência, e se graduou com os anos.
Interação – Houve já alguma vez a tentativa de uma via folclore do desenvolvimento?
Vasconcellos – Sim, houve. Com um amigo baiano de Cascudo, aliás, o pai espiritual do cineasta Glauber Rocha, o saudoso Edson Carneiro, o autor da “Umbanda”, que se engajou numa campanha nacional a favor do folclore, apenas a solidariedade de alguns poucos malucos, os que amam o folclore, o espírito que sopra onde quer. Às vezes me parece que uma sociedade sem desigualdade de classes no Brasil teria que ser essencialmente folclórica. Isso porque a ciência do povo supera tanto a experiência socialista quanto a capitalista. E, por incrível paradoxo, o folclore não é subversivo, embora possua muita coisa revolucionária, principalmente no Brasil. Resulta daí o grande apelo da obra de Câmara Cascudo, peixe encantado sem saber nadar; é por isso que na sua obra está a múltipla determinação do folclore. Língua. Dicionário. Locução. Não é fácil fazer um dicionário de qualquer coisa que seja e somar o único país que ganhou de presente um dicionário do folclore. Ali só não se socorreu Euclides da Cunha porque já estava morto. Está tudo lá dito por onde se deve começar a por em prática as investigações da ciência do povo brasileiro. Os professores do Brasil primário ou universitário vão encontrar a memória coletiva num autor que se dissolve no julgamento anônimo, a vaidade posta no anonimato jubiloso. Sem bajulação: Cascudo não gostava de bajular por bajular. O dicionário de Luís da Câmara Cascudo é a festa do povo, não existe mais problema da vaidade pessoal. Então, a melhor memória do Brasil, um ano antes de morrer, dizia aos amigos que não se lembrava dos nomes dos livros que escrevera. A morte no Brasil não baila.
Interação – O que a gente perde por levar Cascudo no folclore?
Vasconcellos - rcio de Berlim ou de Nova York, macaqueando as vulgaridades ef o pado-erudiçpulga, a seduç, a coruja gaba o toco em que mora. eEu ouço frequentemente a afirmação imbecil de que nosso país carece de memória. Todo mundo que se acha esperto intelectual diz isso: país sem memória; negro esquece, índio esquece, o português esquece. Mas quem diz essa bobagem não conhece o autor da maior memória brasileira. Há horas propícias e maléficas, soleira da porta, horas abertas, remédios repugnantes, feitiço, coisa-feita. Todos os nomes. Todas as datas. Impressionante.
Interação – De que é feita a memória dele?
Vasconcellos – Câmara Cascudo teve conhecimento direto do povo, conhecimento em que reminiscência se defende do ouvido; ele ouviu o povo como nenhum outro intelectual. Não se trata apenas de bibliotecas, e sim de convivência. Tomara que daqui para frente comece a ouvi-lo porque a memória de Cascudo é a imaginação do povo. Ele foi também o grande contador de estórias.
Interação – Onde ele leu todos os livros lidos e citados?
Vasconcellos – Ah, isso é um mistério.
Interação – Qual o futuro de sua obra?
Vasconcellos – Todos nós devemos nos preocupar com a preservação do seu legado, principalmente as autoridades educacionais. O perigo da sua obra se perder é enorme, Deus nos livre dessa desgraça.
Interação – O que é que ele deixou?
Vasconcellos – Além de 150 livros, cada um melhor do que o outro, vários originais, umas duzentas plaquetas, milhares de cartas. Cascudo se comunicou com o mundo inteiro, é quem melhor escreve carta em nossa cultura fascinada pelo telefone. Ele se apaixonou pela etnologia e a cultura popular aos 18 anos, tocou piano de ouvido, foi pianeiro amigo de Noel Rosa, tinha um ouvido privilegiado, ficou surdo aos 66 anos de idade, como Bethoven, foi amigo de Villa Lobos com quem, no entanto, nunca conversou sobre música, embora professor de música em Natal, o musicólogo desconhecido, como diz Gumercindo Saraiva. Enquanto Natal dormia, aos vinte anos, ele escreveu “RONDA DA NOITE”.
Interação – Por que há ódio entre a saudade e o folclore?
Vasconcellos – O verdadeiro pode não ser popular, mas Cascudo não substituiu a verdade pela imaginação.
Fonte: INTERAÇÃO – A Revista do Professor, Ano III, no. 22, Setembro de 1986.
* Gilberto Felisberto Vasconcellos nasceu no interior de São Paulo, Santa Adélia, 1949. Diplomou-se em Ciências Sociais pela USP, 1972. Pós-Doutorado em Sociologia, 1977. Sociólogo por profissão e folclorista por adoção.
Eugênio Netto
Dela se diz muita cousa. Foi cantada em prosa e verso. Serviu de mote a muita glosa de Stanislaw Ponte Preta. Tem sido elogiada e combatida. Endeusada e amaldiçoada. Falam de sua inutilidade. Há quem diga que o tema mais discutido nas reuniões das quintas-feiras é o preço do chá que teria subido e o sabor das torradas trituradas pelos dentes postiços dos provectos imortais. Mas, na verdade, ela continua indiferente aos ataques ou elogios. Segue sua trajetória e é ambicionada até por ex-presidentes da República. De muitos membros não se conhece sequer a bibliografia. Há outros consagrados no mundo das letras. E há, sobretudo, para elevá-la, um Jorge Amado, que apesar de “Gabriela Cravo e Canela”, é genial. Tem sabor de povo. De mar. Cheiro de maresia.
O processo de escolha dos membros da Academia Brasileira de Letras é que precisa ser revisto com urgência. Não se entende como um intelectual consagrado, saia de casa em casa mendigando votos para uma eleição que nem sequer vai enriquecer seu “curriculum” ou aumentar sua bibliografia. Quando vaga uma cadeira da ABL, nem sempre é o mais merecedor que vai ocupá-la. É aquele que tem maior poder de aliciamento, de mobilidade, de habilidade política. Raro é o verdadeiro intelectual que vai buscar votos para si próprio. Prefere fazê-lo para o amigo. Até menos merecedor do que ele. O mais comum é ver-se o dono de uma obra literária reduzida procurar notabilizar-se pela presença na Academia, alcançando assim, uma glória que não lhe dera o que escrevera ou dissera.
Talvez pelo critério de escolha, um homem quase genial fique para sempre marginalizado, sem alçar-se à glória do “Petit Trianon”. Dono de uma modéstia franciscana, o escritor Luís da Câmara Cascudo, professor emérito , etnologista, folclorista, historiador, dono de quase cento e cinqüenta livros publicados e outros tantos escritos e inéditos, afora conferências, estudos, separatas, traduções. Ele jamais sairia do “seu mundo” – vasta biblioteca com mais de 20 mil volumes – para suplicar um voto pelo amor de Deus. A Academia Brasileira de Letras se sentirá muito mais engrandecida por ter Câmara Cascudo, que ele por pertencer-lhe. Ela precisa muito mais dele, que ele, dela.
De Luís da Câmara Cascudo se poderá dizer apenas, como o fez o escritor Diógenes da Cunha Lima que: “Aos trinta dias do mês de dezembro do ano da graça de 1898, na feliz cidade de Natal, nasceu uma criança de cor branca, considerada linda, de olhos lembrando o azul e que se chamou Luís, na pia batismal”. Afilhado do desembargador Joaquim Ferreira Chaves e dona Alexandrina Chaves. O padrinho era Governador do Estado e a madrinha dera o nome à vila de Alexandria, hoje município e cidade. O padrinho, que sabia latim, respondeu às perguntas do padre João Maria: “Quid petis ad Ecclesia Dei. Fidem!”. E a igreja concedeu-lhe a súplica. O sacerdote disse seu nome certo em latim: “Ludovicus”.
Cresceu em riqueza e sabedoria, dentro do carinho apoiante do coronel Francisco Cascudo e Dona Ana da Câmara Cascudo. Filho único, tudo fácil: professor em casa, livros os que existiam, recebendo amigos, cultuando a inteligência e, sobretudo, valorizando a sensibilidade.
Aprendeu a ler em “Lições de Cousas”, livro cheio de gravuras e enunciados científicos: “O ar é região dos pássaros” ou ainda “O ar entumesce as velas dos navios”.
Viveu menino, o sertão. Confessa que “deliciosamente”. Voltou a Natal e cresceu com a cidade. Compreendeu-lhe os encantos, descobriu-lhe o singular e o que de universal. Neste século, não há iniciativa científica, artística ou literária norte-riograndense, em que não haja presença, halo, incentivo, criação do Mestre Cascudo.
Foi amado, rapaz, pelas moças do lugar. Era elegante, usava monóculo e polainas. Apaixonou-se por uma menina de 16 anos com delicadeza e nome de flor. Dáhlia foi pedida a casamento num Domingo de Páscoa. Casaram-se dois anos depois. Fernando Luís e Ana Maria completam-lhe a felicidade. O maior orgulho do autor de quase cento e cinqüenta trabalhos de alto valor, do homem que recebeu as grandes honrarias, é ser avô de Daliana, a mais importante e vontadosa habitante do solar da Junqueira Ayres, 377.
Em sua casa, recebe quantos o procuram. Ensina em minutos, o que lhe custou anos de pesquisa. Foi professor de História, por concurso, do velho Ateneu. É catedrático da Cadeira de Direito Internacional Público da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Agradeceu ao convite do Reitor da Universidade de Brasília, rindo no seu melhor: “Deste reino, só para o dos Céus”.
De e para toda parte do mundo há correspondência epistolar. Respondendo e fazendo consultas. As suas grandes amizades. São rápidas as suas ausências do Estado. O escritor foi várias vezes à Europa. Toda sua onisciência empenhou-se em descobrir a África e países da América do Sul.
Dizem que as grandes presenças do Natal, são: o Rio Potengi, o Forte dos Reis Magos e Luís da Câmara Cascudo.
Quando recentemente esteve no Rio Grande do Norte, o Presidente Ernesto Geisel, fez questão de visitá-lo em sua residência.
A vasta bibliografia do mestre não permite uma citação integral. Mas, vale registrar que, de “Alma Patrícia”, em 1923, até “O Tempo e Eu”, humilde autobiografia, contam-se um acervo de quase cento e cinqüenta livros, afora conferências, ensaios, traduções e separatas. Vários dos seus livros estão traduzidos para diversos idiomas. Há pouco tempo, a Reitoria da Universidade Federal de Tóquio, mandou pedir autorização para traduzir sua monografia – A Jangada. Entre suas obras mais importantes estão: Dicionário do Folclore Brasileiro – Intencionalidade do Descobrimento do Brasil – Vaqueiros e Cantadores – As Lendas de Extremoz – Antologia do Folclore Brasileiro – Contos Tradicionais do Brasil – Ermete Mell’Acaia e La Consulta Delle Oracoli, publicado em Nápoles – Cinco Livros do Povo – História do Rio Grande do Norte – Universidade e Civilização – Grande Fabulário de Portugal e Brasil – Etnografia e Direito – Brazilian Folklore, publicado em Nova Iorque e Flor de Romances Trágicos.
Mestre Cascudo é membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e de todos os Institutos Históricos dos Estados Brasileiros.
Pertence às Academias de Letras do Pará, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte (Fundador), Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Acre.
Academia Nacional de Filologia; Sociedade Brasileira de Folklore (presidente e fundador); Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia; Centro de Ciências, Artes e Letras, de Campinas; Presidente de Honra da Casa Euclides da Cunha, em Natal; American Folk-Lore Society (honorário); Sociedade de Folclore do México, Chile, Bolívia, Argentina, Uruguai, Irlanda, Peru e Londres, sendo desta, o único membro em toda América Latina; Sociedade de Geografia de Lisboa; Societè des Americanistes de Paris; Societè Suisse des Americanistes, Genève; Instituto de Coimbra; Instituto Português de Arqueologia, História e Etnografia de Lisboa; Real Academia Galega, La Coruña, Espanha; Associacion Espanõla de Etnologia e Folk-Lore, Madrid; Academia Nacional de História e Geografia, México; Comission International des Arts e Traditiones Populaires, de Paris; International Society for Folk-Lore Narrative Research, Gottingen, Alemanha; Honorary Life Membership of the American International Academy, New York; Academia de Ciência de Lisboa; Sócio Honorário da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia da Universidade de Porto, Portugal.
Historiador da Cidade do Natal – Resolução do Prefeito Sílvio Pedrosa, em 25 de dezembro de 1948, com entrega solene do diploma em pergaminho e miniatura de ouro da chave da cidade.
Rua Câmara Cascudo, em 31 de dezembro de 1955, o Prefeito Wilson Miranda, sancionou a Lei Municipal no. 341, denominando Rua Câmara Cascudo à rua em que nascera o escritor. Foi aposta uma placa de bronze, com os seguintes dizeres: “Nesta casa nasceu, em 30 de dezembro de 1898, o insigne escritor Dr. Luís da Câmara Cascudo, Historiador da Cidade do Natal, mestre do Folk-Lore e glória definitiva da cultura brasileira”.
Biblioteca e Museu de Arte Popular Câmara Cascudo – por iniciativa do Lyons Clube, assim se denominou esse departamento da prefeitura do Natal.
Honra ao Mérito do Lyons Clube do Natal.
Missão Cultural no Uruguai.
Prêmio Literário Câmara Cascudo – por iniciativa do então vereador Eugênio Netto, à Câmara Municipal do Natal, votou à sua unanimidade, a criação de um prêmio anual de quinhentos cruzeiros (1962) ao melhor livro publicado anualmente.
Semana Câmara Cascudo.
Medalha Cultural Câmara Cascudo.
Instituto de Antropologia Câmara Cascudo, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Conseguimos a custo uma relação das condecorações recebidas pelo mestre Luís da Câmara Cascudo, que infelizmente, está incompleta, com a omissão de várias delas.
Grande Oficial do Mérito Naval.
Comendador da Ordem do Mérito Militar.
Medalha de Caxias, o Pacificador.
Medalha do Mérito Tamandaré.
Medalha da Campanha do Atlântico Sul (Aeronáutica).
Medalha dos Guararapes.
Medalha de Guerra.
Medalha Sílvio Romero.
Medalha do Mérito Alberto Maranhão.
Medalha de Benemerência do Liceu Literário Português.
Medalha do Ouro Honra ao Mérito (Programa Esso).
Comendador da Ordem Militar de Cristo (Portugal).
Comendador da Ordem de Cisneyros (Espanha).
Comendador da Ordem de São Gregório (Santa Sé).
Star and Cross of the Academy Honor de New York.
Oficial da Ordem da Coroa (Itália).
Pertence, ainda, a várias Ordens particulares e honoríficas no grau de Comendador.
Professor Catedrático de Direito Internacional Público na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Consultor Geral do Estado (aposentado).
Ex-professor de História do Ateneu Norte- Riograndense.
Ex-diretor do Arquivo Público e Museu.
Primeiro Diretor do Instituto de Antropologia da UFRGN.
Instalou e muitos anos lecionou Etnografia Geral na Faculdade de Filosofia, então mantida pela Associação dos Professores.
Foi um dos fundadores do Instituto de Música, havendo ministrado aulas públicas de Canto Gregoriano e Polifonia.
Foi um dos fundadores do Instituto da Ordem dos Advogados, secção do Rio Grande do Norte.
Um dos fundadores da Associação Norte-Riograndense de Imprensa.
De 1923, até a presente data, tem sido unicamente Professor.
Afirma que, voltando à mocidade, recomeçaria a mesma profissão.
No seu livro autobiográfico, diz Câmara Cascudo crer endossar a biografia do professor Afrânio Peixoto, citando: “Ensinou e escreveu: nada mais aconteceu”. É ainda de sua autobiografia, abrindo a narrativa, a citação do imortal Goethe (Liebhaber in allen gestaltem): “mas, enfim, sou o que sou.
Se assim te sirvo aqui estou;
Se queres mais linda prenda,
Manda fazer de encomenda
Que eu, enfim, sou o que sou,
Se assim te sirvo aqui estou”.
Paola Francinetti
Dentre da simplicidade do seu pijama, a grandeza do Folclorista, Professor e boêmio Luís da Câmara Cascudo comove a gente com seus olhos verdes, sua malícia, lucidez incrível para seus 79 anos e a famosa irreverência, que no fundo não passa de um “desligamento” ao protocolo, seja oficial ou do dia-a-dia.
“Sou um provinciano incurável. Quando a Sra. Geisel e sua filha estiveram aqui em casa, consegui no início dizer ainda uns três Sim, Senhora, depois esqueci e terminei apertando o queixo da Lucy, pois a danadinha teimava em tirar fotos minhas. É uma menina muito simples e simpática (e ficou de voltar)” e completa rindo “as mulheres são sempre meninaspara mim. Dáhlia, minha cara-metade, é uma delas. Mulher não tem idade e ela é moldada pelo carinho do seu homem”.
Uma de suas grandes emoções aconteceu quando “uma lua que só Natal possui, estava lá, linda, paradinha. Então fui com Dáhlia para o jardim e ficamos de mãos dadas olhando (lua sem mulher perde um pouco do seu encanto...). Foi então que saiu meu neto Newtinho e num grito como se descobrisse algo surpreendente “aí, heim”...namorando!” e sempre com ar coruja é delicioso namorar e foi bom dar a ele essa imagem de ternura”.
E isso o povo do RN lhe tem sempre demonstrado. Foi praticamente tombado pelo amor de sua gente “jamais voltaria a fazer política. Como poderia dividir meus conterrâneos?” e lembra uma prova desse carinho de um amigo já morto, Jordão Emerenciano. Viajou e dias depois chegava um telegrama que Cascudo guarda até hoje. “Não tenho assunto, tenho saudades”.
- Amigo?
- É um parente por vocação.
- Parente?
- É um amigo por obrigação...
El mundo visto a los ochenta anõs, de Santiago de Ramon y Cajal é sua curtição atual. Lia-o quando cheguei depois de mais de uma semana tentando uma hora para um bate-papo mais dentro do seu gênero, livre, descontraído.
“Não gosto que me façam sempre as mesmas perguntas, embora, acredito, sejam necessárias. Julguei que, depois de ficar meio surdo (diga aí que nunca tive enfarte como uma revista publicou), bom, todos os dias recebo inúmeras visitas que são verdadeiras aulas. Quando eu pensava que estava livre delas e elas de mim, aparecem a toda hora...” e como pedindo desculpas, puxa minha orelha, olha-me de “cima-a-baixo”, vê a aliança e diz bem a lá nordestino, com riso maroto, “espero menina, que seu noivo tenha competência!...”.
- Diferença de Natal dos lampiões e dos anticoncepcionais de hoje?
“Só não mudou o céu e o rio Potengi. Transformou-se tudo lá fora. Mas, o que é mais importante, você saber que dentro de você nada mudou. Há aqui em casa um sem número de medalhas, condecorações, e, por último, recebi o título de Cidadão Paulistano (17 de maio de 76-SP). Sou o mesmo do meu primeiro banho em água morna em bacia de ágata. Um detalhe, a água foi temperadacom vinho do Porto para que eu ficasse sempre forte e com um patacão do Império para não faltar dinheiro... Graças a Deus tive a sorte de ficar pobre para poder dedicar-me aos meus estudos”.
Aprendeu o folclore ouvindo aboio dos vaqueiros. Estudava as “inutilidades” como classificavam alguns “gênios”...que hoje têm de considerar indispensáveis seus estudos, ensaios, livros.
“Vivi no sertão típico, agora desaparecido. A luz elétrica não aparecera. O gramofone era um deslumbramento. O velho João de Holanda, de Caiana, perto de Augusto Severo, ajoelhou-se no meio da estrada e confessou – aos berros – todos os pecados, quando avistou, ao pôr-do-sol, o primeiro automóvel... Eu sou da geração do recado. Enquanto Nabuco andou de sege e automóvel, minha geração começou a cavalo e terminou no avião a jato. Dentro da mesma geração, o mesmo homem!.
Vi pela televisão o delírio norte-americano recepcionando os astronautas em 1969. Velho pesquisador de causas banais e comuns, constatei que os aplausos aos vencedores da lua, eram manifestados e retribuídos da mesma forma que se usara na Babilônia. O Homem vence o espaço sideral, transplanta vísceras, explora o átomo, mas não foi possível imaginar outra maneira de concordância coletiva e pública se não agitando os braços e batendo as palmas das mãos. Infelizmente hoje em dia já não se sabe por que bater as mãos, mas se bate...”.
- Antropologia Cultural ou Etnografia?
“Não sei se por culpa do meu curso de Medicina, vejo Antropologia como o homem físico. Acredito que o grupo (ethnos) fez e faz tudo. Daí afirmar que existe Etnografia e não Antropologia.
Outra coisa que não aceito é se juntar “notinhas” e escrever algo que não se viveu. O estudioso tem de ir à mina buscar o ouro. Por exemplo, para a colheita de assuntos religiosos, macumbas, candomblés, xangôs, fique solidário com a turma informante. Uma gargalhada incontida põe toda a boiada a perder. Coma, beba, dance, careteei, salte, tudo para inspirar amizade, confiança. Seabrock, no Haiti, bebeu sangue quente de boi. O Pe. Colbacchii entre os Orarimigodogues, do Mato Grosso, bebeu aluámastigado pelas velhas. Folclore e Etnografia tem seus mártires. Sacrifique-se!...”.
- Livros que lhe falam mais?
“Canto de Muro, O Tempo e Eu. O que mais demorei a terminar. História dos Nossos Gestos. Levei 6 anos”.
“História dos Nossos Gestos” é uma profunda pesquisa sobre a mímica no Brasil. Sobre o folclore já publicou mais de 35 livros e sua Bibliografia vai a 23. Em breve irá para o prelo o que ele diz ser seu último livro. Faz seu misteriozinho no “depois eu conto”!.
- Auta de Souza?
“Essa pequena mulher e grande poetisa norte-riograndense, embalou-me nos seus braços. Ela já estava com tuberculose e minha mãe não sabia, mas seu carinho era tal que se fez uma barreira e eu não peguei a doença”. Auta de Souza, nascida em Macaíba, município vizinho a Natal, é uma das figuras do RN mais querida e pesquisada pelo Mestre. “Auta só rezava de joelhos...mas em cima da cama. Morria de medo de ratos. Quem tinha medo também eram seus irmãos, mas era de descobrirem que Auta era mulher em toda a essência. Puseram-lhe uma auréola de casta, virgem até mental. Quando comecei a estudar sua vida, a perguntar a suas amigas, companheiras de colégio, provei para a família que nossa poetisa tinha sexo. Foi um Deus nos acuda! Ora, a Auta chegou a mudar o nome do seu romance “Dália” para “Horto” quando seu amor se foi...”.
- Gilberto Freire?
“Hum, perguntinha capciosa, hein menina!? Bem, conheci-o em 1924. Acho-o revelador do cotidiano brasileiro. Casa Grande e Senzalaé um marco. O que existe entre nós é uma diferença de temperamento. O dele mais trancado, o meu mais espontâneo. Acredito muito nessa palavrinha, nós. Além disso, como escreveu Santiago de Ramón y Cajal, “há eu e vários egos”.
- E a Censura?
“Isso é lá pergunta que se faça? Mas, pode escrever aí minha definição. Censura é o regime dietético oficial, contrário às exigências do nosso paladar. Não discuto a legitimidade de ambos...”.
Texto: Luzanira Rêgo
Mergulhado no silêncio de uma surdez que apenas é perturbada por imaginárias tocatas de Bach, Luís da Câmara Cascudo é, quase aos 80 anos, “um homem que realizou uma transferência miraculosa no campo fisiológico e que agora ouve com o coração, perdida a intimidade do som”. Com mais de 150 livros publicados e traduzidos em cinco línguas, Câmara Cascudo é “um solitário entre as gentes”, um “eterno noivo” das Academias de Letras e, sobretudo, um homem que, ex-deputado “no tempo das eleições falsas e dos políticos verdadeiros”, aprendeu que se deve sempre orar “pro nobis”, mas nunca dizer “amém”.
Arguto nas observações e de algum modo ferino nos seus comentários ácidos, na maior parte das vezes acerca da realidade política e intelectual brasileira, Cascudo confessa já haver perdido “a faculdade” de se indignar: “sou um velho professor aposentado e quero manter meus hormônios em equilíbrio, sem desgastar o restinho de vida que ainda tenho”. Diretivo, garante: “nunca estudei senão o que amava, ninguém me obrigou a me entregar a um assunto porque estava na moda ou porque agradava ao Presidente da República. Sou fiel à minha vocação. Quanto à Academia, não entrei porque não tenho feitio acadêmico, tenho a impressão de que eu, de fardão, espadim de lado e chapéu de bico, ficaria parecendo o rei do Congo. Prefiro o título sentimental de sempre noivo, sem as responsabilidades de um casamento acadêmico”.
“Nasci na Rua das Virgens num 30 de dezembro e criei-me olhando o Rio Potengi e os sertões do Nordeste, vendo Natal com noventa e seis lampiões de querosene” – conta Cascudo, um norte-riograndense que nunca cedeu às muitas propostas para que abandonasse as ruas ladeirosas de Natal e seu casarão cor-de-rosa no bairro da Ribeira pelos encantos de concreto de outras metrópoles.
“Esta cadeira de balanço é o meu trono e esta casa, meu reinado. Para continuar aqui abdiquei de muitas coisas que teriam tentado ao mais insensível dos mortais, mas sempre fui fiel à minha vocação de professor – e isso é uma coisa rara de se ver no Brasil, um homem fiel à sua vocação. Sempre trabalhei sozinho, sem a ajuda de ninguém, sem verbas, sem tomar dinheiro emprestado, e, sobretudo, sem ir atrás do andor. Eu vejo a procissão passar, mas atrás do andor eu não vou não”.
“Quando eu nasci o Brasil estava à beira do abismo. Passados todos esses anos, uma das duas coisas deve ter acontecido: ou o abismo se fechou ou o Brasil se alargou. Milagre Brasileiro, isso nunca existiu. Se eu estivesse metido em todos os bamboleios, sambas e cateretês partidários do Brasil, não teria sido professor nem escrito os livros que escrevi. Para mim, com a experiência que eu tenho, mudança de regime é uma mudança de gaiola, você passa de uma gaiola para a outra, simplesmente. Eu não quero saber de política. Em fandango de galinha, barata não se meta. O Brasil já está cheio de gênios. O único que não é gênio sou eu”.
Menino, Câmara Cascudo conviveu com malassombros, mulas-sem-cabeça, sacis-pererês, botijas, almas penadas. Velho, transformou-se “mais num homem de fé que num homem de culto”.
“Eu não tenho problema religioso. Tenho fé. Que me perdoe a Igreja Católica, mas tenho o meu próprio caminho para Deus, a minha maneira de convivência divina. O meu breviário, as minhas orações, são feitas por mim. É mais um entendimento que uma prostração. Não menti, não roubei, não fiz mal a ninguém conscientemente, não tenho do que me arrepender. Eu não preciso de recomendação, vou me entender pessoalmente com Deus, a minha vida é a minha credencial. O que eu fui Ele sabe. Tenho formação católica de meu pai e de minha mãe e vez por outra eu rezo, como minha mãe me ensinou, o Padre Nosso, Ave Maria, Santa Maria, o Credo. Só não rezo o Eu Pecador, porque seria sobrecarregar Nosso Senhor com uma tarefa muito grande, a de contar os meus pecados. Quando o Papa Pio XII me fez Comendador da Ordem de São Gregório, eu pensei logo no trabalho que vou dar a São Pedro. Eu, pecador profissional, e ele sem poder me botar pra fora do céu porque eu sou da Ordem de São Gregório. Vai ser engraçado”.
De pijamas e chinelos, o charuto Havana legítimo espalhando fumaça sobre os muitos quadros e móveis antigos da sala onde trabalha e descansa das suas “pesquisas de memória”, Câmara Cascudo conta as suas estórias e histórias, fazendo sair, da fumaça dos cinco charutos que ainda fuma em média, por dia, muitas lições de vida:
“O ideal do intelectual brasileiro é ser professor de natação sem se molhar. Ele quer ficar na margem, enxuto, gritando para os alunos que distendam tais músculos ou façam tais movimentos, mas sempre sem se envolver e sem entrar na água”.
“Sou fiel à jumentalidade da minha geração. Entre as coisas que ignoro está o que vem a ser “Antropologia Cultural”. Não sei e não quero saber o que é. Podem acreditar mesmo que eu sou lunático, pois em vez de escrever sobre Sociologia – em que não acredito – e dissertar sobre Economia Política e essas masturbações que engordam o mundo, eu fui estudar a cultura popular e na maioria das vezes estive sozinho. Os defeitos que a minha obra tiver serão aqueles comuns a quem abriu a picada no mato, os defeitos de quem foi pioneiro. Depois de mim o sujeito pode discutir, me negar e outras coisas, mas estará sempre aproveitando a picada que eu fiz e que amanhã será uma rodovia”.
“A diferença entre mim e alguns “técnicos” é que eu vivi o folclore e eles leram o folclore. Não existe folclore estudado, o que existe é cultura popular, cultura hereditária, cultura viva. O que está havendo é que ninguém tem mais coragem de ver a fundo o panorama e fica contando folhas de árvores, sem descrever o geral. É a sedução do pormenor, que hoje atrai à falta de uma visão de perspectiva. Eu estou surdo, com catarata e burro, muito burro, mas continuo vendo as coisas gerais”.
“Eu queria saber de todas as coisas do campo e da cidade, da convivência com os humildes, sábios, analfabetos, sabedores dos segredos do mar, das estrelas, dos morros silenciosos, jamais abandonei o caminho que leva ao encantamento do passado. Já escrevi muitos livros, entre perdoáveis e imperdoáveis. Os imperdoáveis são, pelo menos, desculpáveis, dada a idade em que os escrevi. Agora, o sujeito que fica só lendo, que nunca faz pesquisa na vida, nunca mergulhou no povo, jamais visitou uma feira, um mercado, nunca viu as velhas sertanejas conversando, não escutou o canto nas bocas populares, esse sujeito que o quê?”.
Às vésperas de completar 80 anos, Cascudo é decidido ao afirmar que, se pudesse, faria tudo novamente: “casava com a mesma mulher, fumava os mesmos charutos, tomava os mesmos pileques, pecava os mesmos gostosos pecados. Não ia nem para a política, nem para a Sociologia, nem para a Economia, nem para as finanças. Seria o mesmo”.
Isolado, cada vez mais, num mundo onde os sons e as imagens fazem parte do passado, ele ainda encontra consolo no que chama de sua “lua-de-mel” consigo mesmo:
“A surdez e a cegueira são processos de concentração que levam ao desespero aqueles que não têm vida interior. Há milhões de criaturas que têm medo de ficar sozinhas consigo mesmas. É uma presença muito desagradável, muito forte. No meu caso, eu adoro a minha companhia. Passei 50 anos estudando e transmitindo, como professor. Agora estou sozinho e em lua-de-mel comigo mesmo. Eu vivia viajando nos livros, nas aulas, nos congressos, nos simpósios, no Brasil, no estrangeiro. Eu plantava, colhia e fazia o pão para outros.
Não tive tempo de estar comigo senão aos 70 anos, quando me aposentei. Quis o acaso que eu ensurdecesse. Para mim, foi um processo de evitar as seduções do som. Não ouço nem a voz dos meus netos, nem uma nota musical, eu que fui professor de História da Música durante 25 anos. Por que eu sou assim bem humorado? Porque nunca estamos sós quando pensamos. Eu vivo sempre arrodeado, porque tive uma vida de pesquisador e essas coisas emergem do silêncio e vêm ao meu encontro conversar comigo. Tem sido uma época, nesses últimos oito anos, de profundas viagens”.
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